Por trás de uma fachada discreta na Rua Marechal José Inácio da Silva, na zona norte de Porto Alegre, funciona, há mais de três décadas, uma espécie de minizoo terapêutico: a cada ano, cerca de 1,5 mil animais silvestres e exóticos — além de cães e gatos — passam pela clínica veterinária de Gleide Marsicano. Referência de órgãos como o Ibama, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e o Batalhão Ambiental para o encaminhamento desses animais, o local é movido pela paixão da proprietária, que banca a maior parte dos atendimentos do próprio bolso ou com a ajuda de doadores.
— Não sei se é um dom ou é um carma. Ao mesmo tempo que me dá um prazer imenso, me dá um cansaço muito grande. Mas se eu não fizer, eu não durmo. Cada animal que entra aqui é minha responsabilidade — diz Gleide, 60 anos.
Veterinária formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) no começo da década de 1980, Gleide tem dificuldades para delimitar onde termina a vida profissional e começa a pessoal. A clínica, inaugurada 31 anos atrás, onde realiza, além do trabalho voluntário, atendimentos particulares de animais domésticos, silvestres e exóticos, começou dentro da própria casa. Anos depois, migrou com o marido e os filhos para um imóvel vizinho.
Uma parceria com o Ibama para que tratasse gratuitamente animais silvestres e exóticos de pequeno e médio porte fez com se tornasse referência no assunto, exigindo adaptações para receber um volume maior de animais. O trabalho transbordou novamente para dentro de casa. Enquanto a clínica conta com salas específicas para acomodar os animais, gaiolas para os pássaros e dois viveiros, o pátio de sua residência é comedouro de dezenas de aves que já foram atendidas por eles. Mais de um terço do espaço — separado da clínica por um pequeno portão — foi transformado em um viveiro construído com verba arrecadada através de rifa. Nesta terça-feira (25), descansavam por lá dois cágados que devem ser devolvidos à natureza nos próximos dias.
— A coisa foi tomando uma proporção que não imaginávamos. Mais para frente, queremos nos mudar e usar esse imóvel para ampliar a clínica. É um estilo de vida que a gente escolheu. Entre ir ao shopping e comprar um vestido para mim ou comprar fruta para eles, eu prefiro comprar fruta — conta.
Tamanduás, ouriços, tatus, capivaras, bugios, corujas, cágados, gaviões, andorinhas, tartarugas, gambás e outras dezenas de espécies já passaram pelos cuidados dos nove veterinários que atuam no local, que serve também como casa de passagem dos animais. Depois de recuperados, os silvestres são preparados para retornar à natureza, em lugares previamente acordados com os órgãos ambientais, enquanto os exóticos são destinados a particulares igualmente autorizados.
No dia em que a reportagem visitou a veterinária, dezenas de animais, entre cágados, bugios, caturritas, papagaios, um sabiá, gambás e uma coruja, recuperavam-se de problemas de saúde ou simplesmente aguardavam por um novo destino. Embora apegar-se aos animais seja consequência natural da convivência prolongada, Gleide tenta manter certo distanciamento, especialmente daqueles que terão de retornar à natureza — para que tenham condições de se defender.
Alguns dos que ficam por mais tempo acabam batizados. Um papagaio que nunca se adaptou à natureza ganhou o nome de Kiko. Apreendido de uma indígena na Redenção meses atrás, um filhote de bugio que ainda recebe cuidados foi chamado de Polenta. Das veteranas, exploradora noturna do viveiro, uma mão-pelada — espécie de guaxinim — de três anos é conhecida como Violeta. Levada para Gleide com apenas cinco dias de vida, a fêmea, que sofre de cegueira, foi das que exigiram da veterinária dedicação integral: em razão de sua alimentação e das condições de saúde, ficou abrigada, nos primeiros meses de vida, dentro da casa onde vive com o marido, João Artur de Fraga.
Gleide conheceu o marido no zoológico de Sapucaia do Sul
O fascínio de Gleide pelos animais surgiu ainda na infância, quando acompanhava o pai em seu trabalho na administração do Zoológico de Sapucaia do Sul. A relação com o local manteve-se estreita durante a faculdade, quando retornou ao local diversas vezes — no fim da década de 1990, atuou como administradora. Também foi onde conheceu o marido, que atuava como tratador, e tornou-se seu principal parceiro no cuidado com os animais.
— É meio confuso para a Gleide, porque ela trabalha 24 horas. Para mim, é sossego: acordo, trato os passarinhos e vou tomar um chimarrão vendo eles comerem. Tem coisa que tive de reformar, como um sofá que tínhamos na época que a Violeta era filhote. Mas eu adoro bicho. Tem que gostar, senão o casamento dissolve — brinca João.
Como ajudar
A Toca dos Bichos não aceita dinheiro, apenas doações de alimentos, medicamentos e produtos de limpeza. É possível contatar o local através do facebook www.facebook.com/VoluntariosdaFauna ou pelo email gleidemarsicano@hotmail.com