*Por Jackson Raymundo
Mestre em Letras e especialista em Administração Pública pela UFRGS
O momento tenso por que passa o Brasil não poupa sequer aquele que, ao longo do último século, se consagrou como um dos principais símbolos identitários do país e de uma almejada "brasilidade". Em meio às crises política e econômica e à ascensão do conservadorismo, o Carnaval se vê numa encruzilhada: discursos de apelo fácil criam uma contradição entre a festa e áreas como saúde e educação, e a sua própria relevância cultural é posta em xeque. Não é diferente em Porto Alegre, cidade com tradição carnavalesca desde o século 19.
Quando se pensa na capital mais meridional do país, é preciso desmistificar o argumento de que o porto-alegrense não gosta de Carnaval. Durante meses, multidões vão às ruas nos blocos da Cidade Baixa, nas "descidas da Borges", nas quadras das agremiações. Os blocos promoveram o reencontro com a espontaneidade das ruas, sendo um fenômeno ressurgido de forma intensa na última década. As escolas de samba, por sua vez, são uma longa tradição em Porto Alegre e em muitas cidades gaúchas.
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Escolas de samba: para onde vão?
Diferentemente de capitais com sambódromos há vários anos, como Rio (1984), Florianópolis (1989) e São Paulo (1991), em Porto Alegre conflitos diversos fizeram com que ainda hoje as escolas de samba e as tribos não contem com um espaço construído de modo definitivo. O Complexo Cultural do Porto Seco é uma realidade desde 2004; suas arquibancadas, porém, seguem provisórias, sendo montadas e desmontadas a cada ano, e sua utilização continua restrita basicamente aos eventos carnavalescos.
A ideia inicial, que chegou a ser bastante desenvolvida, era de que o sambódromo se localizasse junto ao Parque Marinha do Brasil. Resistências de setores da comunidade e da Justiça inviabilizaram o projeto. A contrariedade impediu a sua construção também no bairro Humaitá, na entrada da cidade – próximo de onde, anos depois, seria erguida a Arena do Grêmio.
As barreiras para que as escolas tivessem o seu templo edificado em local de maior visibilidade pública levaram a outra opção, o Porto Seco, junto ao complexo logístico no extremo-norte de Porto Alegre. Dentre os aspectos positivos considerados, estavam a receptividade da comunidade, a construção de barracões e arquibancadas fixos (passados 13 anos, só os primeiros foram feitos) e iniciativas como a criação de um museu (também não realizada). Além disso, a concepção era de que o sambódromo saía do Centro, mas ia ao "coração" da Região Metropolitana, em um Carnaval com escolas de toda Grande Porto Alegre. Por fim, outro mérito seria atender a uma região populosa carente de instituições culturais públicas.
O afastamento do Centro, contudo, teve como consequência a perda de visibilidade dos desfiles. Vendo sob outro ângulo, acentuou o seu caráter periférico e negro; continua reunindo um grande público, porém sem coincidir com aquele dos blocos centrais (assim, se reproduz uma separação que não é só do Carnaval, mas da sociedade). Sem a realização de atividades e sem um sistema de infraestrutura, o Porto Seco ficaria abandonado durante o ano.
Quando se pensa no papel da gestão pública em relação ao Carnaval, há de se considerar a sua importância cultural e social, mas também econômica. Toda uma cadeia produtiva é movimentada, gerando empregos e renda. No Rio, é um dos principais elementos econômicos – em 2016, a cidade recebeu mais de 1 milhão de turistas, e o Estado, a injeção de R$ 3 bilhões. Em Porto Alegre, estima-se que 100 mil pessoas passaram pelo Porto Seco em três noites de desfiles (sem contar os blocos de rua), arrematando um processo que, durante um ano inteiro, envolveu costureiras, escultores, cantores, instrumentistas, eletricistas, soldadores etc., além de comerciantes e ambulantes de diversos segmentos.
O Carnaval nunca deixou de ir atrás de recursos privados. É uma falácia acreditar que as entidades aguardem passivamente o repasse de recursos públicos. No entanto, há de se considerar a crise por que passa o financiamento de todo o setor cultural. Se o Brasil até agora não conseguiu consolidar uma cultura de mecenato puro (pessoas que doam parte de sua renda sem contrapartida do Estado), tampouco as leis de fomento, que se valem da renúncia fiscal, têm se mostrado suficientes.
A cultura, e o Carnaval em particular, podem ser estratégicos para que o Brasil tenha um desenvolvimento atrelado a seu capital simbólico, mantendo-se como um país laico e plural, resistindo ao avanço da roda-viva obscurantista. Assim, estará se evitando a perda daquilo que de mais rico o país conquistou: a sua diversidade.