"Tem um dragão na minha garagem". Imagina que alguém diga isso a você. Li a frase há muitos anos em um livro do Carl Sagan, O Mundo Assombrado pelos Demônios (Companhia das Letras, 1995). Ao ouvir isso, ele continua, você, que tem uma mente aberta, responde que quer ver o dragão, afinal, há tantos relatos - chineses, vikings, medievais - a respeito deles, quem sabe não tem algo aí. Mas ao chegar lá, a garagem está vazia, e o seu interlocutor fala "ah, esqueci de dizer que é um dragão invisível". Você propõe colocar farinha no chão para ver as pegadas, e ele responde que não vai funcionar, pois o dragão flutua. Não importa a solução que você proponha, jogar tinta spray no ar, por exemplo, sempre a pessoa sai com uma explicação, o dragão não tem corpo. Ele acredita no dragão, e pede que você acredite também, sem evidência ou testes. O que você faz? O capítulo do livro era sobre alienígenas, mas me lembrei disso na semana passada. Imagina que alguém diga: "Eu tenho um chá que cura bronquite". Ou "um tônico que rejuvenesce". Ou: "Uma pílula que cura câncer. Não está na farmácia, nenhuma companhia vende. Posso inclusive te dar de graça. Foi testada por mim e funciona, eu tomo e não me faz mal". O que você faz?
Quando uma descoberta científica acontece, nem sempre compreendemos se ela terá algum potencial de aplicação em um futuro próximo - foi assim com a eletricidade, o magnetismo, a radioatividade. Quando se encontra uma aplicação, os testes de eficácia levam décadas para convencer a comunidade científica da reprodutibilidade dos resultados. Depois, vem mais uma década no mínimo de testes clínicos, para segurança, e também para adequar dose, regime de tratamento. Eles geram uma enorme quantidade de dados, que segue sendo avaliada por mais outras tantas décadas para comprovar (ou refutar) o que se descobriu, comparando com novidades que vão surgindo. Todo esse processo não é perfeito, mas a regulação dessas práticas é essencial para a proteção das pessoas que precisarão da droga.
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Já contei aqui antes do desespero dos cientistas cujos insumos para trabalhar são retidos na Anvisa e perdidos. Existe uma lentidão em vários processos importantes que precisa urgentemente ser revisada. Mas jamais sugeri que a Anvisa devesse ser fechada. A regulação de medicamentos, de seus testes e distribuição, é, sim, fundamental para que drogas sejam ministradas da forma mais segura para os pacientes que as necessitam. Os órgãos regulatórios como a Anvisa ou a FDA (nos EUA) seguem fiscalizando os laboratórios que produzem medicamentos para garantir que eles estão seguindo boas práticas de fabricação e armazenamento. Li hoje, por exemplo, que foi interditado o almoxarifado da maior fabricante brasileira de medicamentos, a EMS, porque a temperatura estava 20 graus (v-i-n-t-e) acima do máximo aceitável para garantir o funcionamento das drogas. Sem essa intervenção, você compraria antibiótico totalmente degradado sem saber. É verdade também que as empresas farmacêuticas cobram muitas vezes preços absurdos por seus produtos. Recentemente, o caso do Daraprim, cujo custo foi de US$ 13 a US$ 750 da noite para o dia depois de ter sido comprado pelo laboratório Turing, ilustrou como isso é desregulado e precisa ser amplamente discutido numa economia capitalista. O CEO da empresa, Martin Shkreli, acha que mercado é isso mesmo. Este caso, como outros, grita por uma intervenção regulatória, que atualmente não existe.
Usar drogas que não completaram os ciclos de testes, ou usar tratamentos alternativos, é uma escolha. Mas um juiz que manda liberar a droga sem compreender a importância do processo regulatório acredita que ela funciona? Acreditar que você pode se recuperar de uma doença desempenha um papel importante, tem impacto fisiológico. O pensamento pode alterar a neuroquímica do corpo, como a liberação de endorfinas sob estresse, fazendo com que um individuo suporte dor ou tensão inimagináveis. Ou apresente melhoras durante um tratamento, mesmo sem estar sob ação de droga alguma - como no efeito placebo. Sabemos disso porque inúmeros estudos em cantos diferentes do mundo encontraram os mesmos resultados. Mas se é você e não a pílula que está fazendo o efeito, você deveria pagar alguma coisa por isso? Ou ainda, mesmo de graça, você precisa dela pra quê exatamente?
*Cristina Bonorino escreve mensalmente no Caderno PrOA.
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