O parágrafo abaixo foi retirado de texto da Comissão Nacional da Verdade e dá a dimensão da história que você conhecerá nesta reportagem.
"Foi grande a repercussão (...) por ser o primeiro movimento armado (...). Durante os meses seguintes, militantes que se opunham à ditadura lançaram a sigla MR-26 (Movimento Revolucionário 26 de março), em homenagem à coluna. (...) "Cardim foi humilhado diante de tropas, torturado e exposto ao público, para que a violência de sua punição servisse de exemplo."
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O coronel Jefferson Cardim (1912-1995) era um carioca que esteve entre os primeiros oficiais de esquerda cassados pelo regime militar assim que se instaurou, em 1964. No exílio, matutava como reagir e tomar o poder. Nacionalista e brizolista, com 53 anos quando estourou o MR-26, chegou a passar por treinamento de guerrilha na Cuba de Fidel Castro.
Conhecido também como Guerrilha de Três Passos, o MR-26 é a mãe de todas as batalhas contra o regime militar (1964-85), promovido por três militares cassados e 20 agricultores. Com apoio do ex-governador Leonel Brizola, exilado no Uruguai, eclodiu quando faltava menos de uma semana para o aniversário de um ano do golpe. Foram tomados o quartel da Brigada Militar e o presídio de Três Passos. Da Rádio Difusora, invadida, transmitiram um manifesto à nação.
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Da cidade gaúcha, Cardim, que saíra também do exílio uruguaio, passou com seu grupo por Tenente Portela e foi escalando o Brasil rumo ao Paraná. Em 26 de março, o presidente Castelo Branco chegara a Foz do Iguaçu para inaugurar a Ponte da Amizade, que une Brasil e Paraguai sobre o Rio Paraná. Estava a cem quilômetros dos guerrilheiros. O perigo era iminente para o ditador, justo no momento em que cortaria a fita de uma das obras mais simbólicas da união entre o Brasil e o Paraguai sob comando do general Alfredo Stroessner. Aviões partiram para a região. Próximo a Capanema, já no Paraná, o grupo foi localizado por um avião da Força Aérea Brasileira. Em Capitão Leônidas Marques, houve tiroteio entre militares e guerrilheiros, que foram capturados aos poucos, em 27 e 28 de março.
Muitos dizem que a repressão brasileira recrudesceu depois do Ato Institucional número 5 (o AI-5), em 1968. Mas o episódio do MR-26 marcou o fim de alguns escrúpulos que ainda restavam no regime de exceção. Estudiosos sustentam que terminou ali a imunidade de oficiais à tortura, regra respeitada em sublevações anteriores. Desencadearam-se, então, perseguições e torturas como ainda não houvera.
- O golpe se impôs com tranquilidade, poucos resistiram. A Guerrilha de Três Passos assustou os militares. Ficou feio. Antes, havia prisões arbitrárias, mas não tortura - diz o presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), Jair Krischke.
O papel de Brizola é controverso. Os integrantes da guerrilha (na maioria já mortos ou desaparecidos) tinham vínculo com o ex-governador, arqui-inimigo do regime. A dúvida que resta: Brizola deu dinheiro para os líderes? Deu a ordem para a operação? José Wilson da Silva lançou em 1984 O Tenente Vermelho (editora Tchê), segundo o qual Fidel Castro entregou US$ 1 milhão para exilados brasileiros no Uruguai, como Brizola, financiarem a guerrilha no Brasil. O destino do dinheiro é um mistério.
Nesta quarta-feira, às 19h, o MR-26 será tema de seminário no Memorial do Legislativo (Rua Duque de Caxias, 1.029, em Porto Alegre). O evento 23 homens que tentaram levantar o país marca os 36 anos do MJDH e os 50 da Guerrilha de Três Passos. Será apresentado trailer de documentário sobre a guerrilha e os depoimentos de participantes do movimento.
Memórias do MR-26
Trechos de depoimento inédito, fornecido pelo MJDH, em que Jefferson Cardim descrevia a organização amadora da primeira reação armada à ditadura militar:
O início, de táxi
"Cheguei (de táxi) a Rivera às 7h de 19 de março de 1965, com os companheiros sargento Alberi Vieira dos Santos, da Brigada Militar, e o civil Alcyndor Ayres e ficamos hospedados na casa de um amigo do Alberi, o companheiro Romeu Figueiredo, onde foi desembarcada a bagagem."
A turma aumenta
"Chegamos a São Sepé ao cair da tarde, onde desembarcou o Alcyndor Ayres, que nos levou à casa do Comissário Brizolista, que nos ofereceu um lanche e conversamos com euforia sobre a situação político-militar favorável ao Comandante Brizola. Disse que estava pronto a ajudar."
Às armas
"Ficamos (...) na casa de um dos irmãos do Alberi, onde conhecemos o companheiro brizolista Democratino Boniulha, que nos ofereceu um mosquetão com dois pentes de bala 7mm, por 10 contos, que de imediato compramos. (...). O prefeito (de Catuípe) Orlando Burman, do PTB, era seu amigo (de Alberi)."
Tiro ao alvo
"Fazíamos treinamentos de marcha e tiro ao alvo. (...) À noite pernoitávamos em um milharal, sob ponchos, com arma ao lado. (...) Esperávamos a chegada de dois companheiros: o Alcyndor Ayres, que deveria trazer pelo menos 20 homens, (...) e o sargento Firmo Chaves, de Porto Alegre, com no mínimo 10 sargentos. (...). Desculpa não convenceu ao Alberi e a mim. Chegou o Ayres com três homens."
Decepção
"Nós, que deveríamos contar com 60 homens, entre eles 12 sargentos, para marcharmos a Ijuí e tomar o Grupo de Artilharia e a cidade, ficamos reduzidos a 23 homens, contando comigo e o Alberi, para tomada de Três Passos, sendo assim prejudicada a segunda fase do planejamento, ou seja, a que seria de maior relevância e suscetível de êxito, pois já tínhamos em conta dois sargentos daquela unidade (...). No dia 25 de março de 1965, deixamos nosso bivaque no sítio do Silvano e instalamos um QG, no sítio do Euzébião."
Empurrando caminhão
"(...) Começava a cair a noite quando deixamos o galpão do QG, com 15 guerrilheiros marchando em fila indiana, tendo à frente, como guia, o velho revolucionário Euzébio Dornelles. Atravessamos densos arbustos em um terreno acidentado, paralelo à estrada, algumas vezes cruzando pelos pátios dos fundos das casas - essa caminhada levou cerca de uma hora -, até que chegamos à casa de um compadre de Euzébio, chefe político do PTB de Campo Novo. Era a pessoa que possuía um caminhão para transportar nosso pessoal até Três Passos. Era um Ford ano 1939, muito usado, que, além de ser velho, tinha somente um farol, pois o outro estava queimado, a bateria estava descarregada, não conseguindo dar a partida no motor. Assim, foi preciso empurrá-lo até a estrada principal para fazê-lo pegar."
23 homens
"Somamos 23 guerrilheiros. (...) Às 23h paramos a um quilômetro da cidade, quando dei a ordem para cortar os cabos telefônicos e telegráficos. (...) Paramos o caminhão bem junto ao poste, e um homem, com alicate em mãos, subiu sobre os ombros de outro (...), sobre a carroceria. (...) Brilharam os faróis de outro veículo que vinha ao nosso encontro (...). Dei ordem para descerem rapidamente, e ao Fraga para abrir o capô do motor. (...) Nos perguntou se necessitávamos de auxílio. (...) Respondemos que não."
De poste em poste
"Estacionamos (...) em outro poste, (...) com a máxima rapidez, pela meia-noite. (...) Entramos na Cidade de Três Passos, à zero hora e 15 minutos de 26 de março de 1965."
"Ordem do coronel"
"Desci fardado, com quepe, gabardina e coturno, empunhando minha pistola Colt 45, o Alberi de traje civil com um mosquetão Mauser 7mm, em bandoleira e empunhando um revólver Smith&Wesson calibre 38 e o sargento Firmo com outro revolver S&W 38. (...) Não havia ninguém (no posto da Brigada Militar). (...) Eram sete os soldados que dormiam e o Alberi apontou seu mosquetão para um deles, (...) o Firmo apontava seu revólver para os demais, gritando: Levantem por ordem do coronel. (...) Colocaram-se em posição de sentido."
Rumo ao Paraná!
"Recolhemos 50 fuzis, uma dezena de revólveres 38 e uma metralhado checa de 7mm, muito velha. (...) Tudo (...) conforme o planejado, tomada da delegacia de polícia, (...) Banco do Brasil e a rádio colocada no ar para divulgar o manifesto à nação. Um velho comissário brizolista nos proporcionou um caminhão Mercedes Benz novo (que estava apreendido), (...) abastecido, dirigido pelo companheiro Fraga. Partimos às 2h da madrugada do dia 26 de março de 1965."
ENTREVISTA
Valdetar Dornelles
Valdetar Dornelles era professor rural quando engajou-se na Guerrilha de Três Passos. Hoje, aos 81 anos, é advogado. Adotou o lema "o que torna belo o entardecer é a esperança no dia de amanhã". Diz-se socialista com fé em Deus desde que a arma falhou quando seria executado, em 1965. Leia trechos de entrevista:
Por que a operação foi tão precária?
O que nós esperávamos não ocorreu, que era o apoio do Exército e da Brigada Militar, que falhou. Nos deixaram no mato. Nos mandaram fazer e, na hora...
Quem mandou?
A rádio anunciou: "Acabamos de captar a seguinte mensagem clandestina: operação imediatamente em ação".
Mas quem deu essa mensagem?
Não sei quem deu essa mensagem.
Brizola apoiou ou financiou?
Em 1961, tínhamos liderado o Movimento da Legalidade na região. O sargento Manuel Raimundo Soares esteve lá em casa a mando de Brizola. Disse que, antes do aniversário de um ano do golpe, tinha que ser feito algo contra a ditadura. Não podiam comemorar em paz. Parece que o Brizola pôs dinheiro nas mãos de um camarada que comprou terras, comprou coisas com esse dinheiro. São coisas que não se pode provar.
O senhor foi torturado?
Fiquei quatro anos preso. Cheguei a estar num paredão para ser fuzilado, mas a arma falhou. Tive enforcamento, choque, pau de tudo que foi jeito, fui queimado, nas pernas, no pescoço, nos braços. Tenho as marcas que vão ficar no meu corpo até eu morrer.
Depois de toda essa luta, o senhor acredita que a ditadura não volta mais?
Faço votos, mas estou vendo o que ocorre hoje, aqui quietinho. Não há lideranças com responsabilidade no Brasil. Não sabem mais perder eleição e não sabem mais ganhar eleição. Tive que ir à luta porque era necessário fazermos alguma coisa. O povo, hoje, nem sabe o que é ditadura, fala em impeachment. Não surge luz no fim do túnel. Se os militares entrarem, o desastre no Brasil vai ser tão grande que ninguém pode imaginar. A elite está brincando com fogo. Estão queimando carros. Daqui a pouco, vão queimar casas. Se não discutirmos democraticamente as coisas, será o desastre.