Calçadas, viadutos e canteiros não foram feitos para dormir, mas em Porto Alegre, cada vez mais, parecem pequenos para a quantidade de pessoas que os adotam como lar.
Locais não registrados no mais recente cadastro da população adulta em situação de rua, realizado pela Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) em 2011, contam com pequenos "condomínios de rua", e a multiplicação dos vizinhos é observada por quem vive na via pública.
Se não há dados atualizados que confirmem a percepção de que essa população não para de crescer, o órgão municipal atenta para uma mudança na constituição desse grupo.
E se Porto Alegre se adaptasse aos moradores de rua?
Maioria dos moradores de rua de Porto Alegre se recusa a ir para um albergue
- Aumentou de forma considerável a complexidade dos casos. Muitas pessoas são expulsas de suas comunidades por causa de criminalidade, tráfico e violência doméstica. E uma coisa que não se via muito: famílias em situação de rua. Também há aqueles que se agrupam para se proteger - observa o presidente da Fasc, Marcelo Soares.
Levantamento realizado em quatro dias das últimas duas semanas pela Rádio Gaúcha registrou 21 pontos, apenas na área central (bairros Cidade Baixa, Centro Histórico, Floresta, Marcílio Dias, Menino Deus, Praia de Belas e Santana), com alguma estrutura de abrigo erguida.
- Com certeza (há mais pessoas na rua). Vêm de lugares diferentes, porque brigam com a família ou ficam devendo para o patrão - comenta Denis da Silva Antonio, 39 anos, que viveu na rua e hoje está em uma das repúblicas da Fasc e auxilia os agentes em abordagens.
O crack é outro fator que contribui para a formação de "comunidades de rua", segundo a doutora em Serviço Social Jane Prates. Para a pesquisadora, que estuda populações em situação de rua, a maior parte dos fatores que desencadeiam esse processo têm a mesma origem: a conjuntura social em que as pessoas estavam inseridas antes.
- Muitos vão dizer que são problemas familiares, mas o que traz o problema familiar é a pobreza, a desigualdade, a violência. Por exemplo: quem tem um filho com problemas com drogas e não tem dinheiro vai recorrer ao SUS. Isso vai levar meses. Até lá, o problema já vai ter afetado a família inteira, que vai mandar a pessoa embora - avalia.
Veja vídeo com depoimentos dos moradores de rua
As "moradas do crack" costumam ficar em locais mais desocupados ou de difícil acesso, como as margens do Arroio Dilúvio, na Avenida Ipiranga, e a Rua Doutor Julio Olszewski, no bairro Marcílio Dias, onde cerca de 15 barracos improvisados abrigam usuários de crack há mais ou menos um ano. Essas mudanças de perfil, entretanto, podem não implicar em um aumento significativo de moradores de rua, conforme Jane Prates. Ela acredita que há fatores que costumam distorcer a percepção das pessoas:
- No verão, eles vêm para a rua. Se vê mais. No inverno, vão para albergues, embaixo de pontes, viadutos. Isso tudo mascara (a realidade).
A Fasc conta com 10 equipes para abordagens. O órgão não retira ninguém à força, nem pode fazer internações. O trabalho é aproximar-se e identificar as necessidades dos moradores. Há um albergue de 120 lugares (para pernoite, que pode receber melhorias este ano), abrigos que totalizam pouco mais de 200 vagas (onde podem ficar por 15 dias) e duas repúblicas (moradias coletivas) que comportam, juntas, 24 pessoas.
- Obviamente, nós não temos um número suficiente (de funcionários). Temos um esgotamento orçamentário para uma demanda que só cresce. Em 2015, vamos contratar 70 novos servidores e abrir um concurso para educadores sociais - reconhece Soares.
O último cadastro realizado pela Fasc contabilizou 1.347 pessoas vivendo nas ruas. Quatro anos depois, as estimativas de quem estuda o tema, como o projeto Universidade na Rua, da UFRGS, são de que o número esteja entre 3 mil e 5 mil. Um novo censo será realizado em 2015, com previsão de divulgação para o segundo semestre.
NOVA CRACOLÂNDIA
Moradores de rua que consomem crack costumam escolher locais fechados, como barracos improvisados e espaços embaixo de pontes e viadutos. Foi assim que surgiu a aglomeração na Rua Doutor Julio Olszewski, continuação da Ramiro Barcelos pouco antes do encontro com a Avenida da Legalidade e da Democracia. São cerca de 15 barracos. As peças têm menos de quatro metros quadrados. O número de habitantes é incerto, pois muitos passam pelo local apenas para comprar e usar a droga.
- Eu sou usuário e não quero parar. Eu gosto. Até quero um lugar para morar, caso me tirem daqui. Mas quero ficar aqui em paz - relata um dos moradores.
O crescimento da pequena vila ocorre sob o olhar das autoridades, tendo como vizinha a 17ª Delegacia de Polícia. Mas ninguém é incomodado. Um frequentador de 25 anos diz que usa crack desde os 17 por influência da mãe, também usuária.
- Até estou disposto a fazer tratamento, mas é uma situação muito difícil. É doença, e eles simplesmente acham que dopando de remédio é a solução - afirma.
LONGE DA RIGIDEZ
Quem opta por morar na rua desgosta de normas rígidas, como as dos três albergues da Fasc. Homens e mulheres que trabalham com reciclagem afirmam que o horário limite para ingresso - às 19h - é cedo, especialmente no verão. O horário de saída - às 7h - também não agrada, especialmente em dias de chuva, quando há pouco trabalho. O albergue permite ao interessado dormir 15 dias seguidos, mas o obriga a sair por outros 15. Quem atrasa perde o benefício nos dias que restam.
- Se der algum problema e eu me atrasar, eles (a administração) não abrem o portão. Só com justificativa em papel - explica Ricardo Castro, 36 anos.
Castro trabalha com reciclagem e não usa drogas. Ele cita uma preocupação com a higiene para preferir dormir embaixo de marquises.
- Lavam os colchões todos os dias, mas não tem condições. Na rua você pega uma vassoura e dá uma limpada. É melhor - diz.
MAIS INDEPENDÊNCIA
Nascido em Salvador (BA), Ubirajara Silveira, 53 anos, veio para Porto Alegre com os avós. Aqui, teve companheira, filhos e netos. Todos moram na Capital, mas Silveira prefere fazer das ruas a sua casa há 15 anos.
- Nem todo mundo que está aí é por sujeira, para roubar. Nem todo mundo é drogado - explica.
Ele circula nos arredores da Praça Pinheiro Machado, no bairro São Geraldo. Já consumiu álcool e crack, e ainda fuma maconha. Diz que o espírito de viajante explica por que continua na rua, mesmo tendo contato com os familiares.
MEDO DO TRÁFICO
Janice da Silva, 42 anos, vive em uma praça um pouco mais afastada da área central. Ela e o companheiro dividem, desde dezembro, uma barraca improvisada com outro casal. Ex-moradora do Morro da Conceição, ela teve de fugir da ameaça de traficantes, após os dois filhos serem presos:
- Tivemos medo. Começou a guerra e o tiroteio.
Janice tem familiares em Cachoeira do Sul, mas não quer abandonar a Capital, onde diz ter mais oportunidades. Hoje, ela e o companheiro vivem de guardar e lavar carros na rua.
FUGA DO CRACK
Aqueles que consomem álcool ou maconha evitam dividir o espaço com dependentes de crack. A opção é por locais menos escondidos. Daniel Silveira, 43 anos, está acampado há quatro meses na Praça Brigadeiro Sampaio, próximo à Usina do Gasômetro, onde, diz, circulam menos viciados.
- Eles (os viciados) te roubam. Nós tomamos uma cachaça e dormimos. Eles são zumbis - diz Silveira.
Dependentes do crack também são considerados mais agressivos. André Sotoriva Moreira, 39 anos, optou pelo canteiro às margens do Arroio Dilúvio na esquina com a Getúlio Vargas:
- Tem bastante usuário (de crack). Veio um e tentou bagunçar as coisas do companheiro. Levei uma paulada.