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No dia 24 de janeiro de 1975, meio contrariado, Keith Jarrett sentou ao piano para fazer história. Ao dar início a seu concerto, reproduzindo as cinco notas do sinal da Köln Opera House, o pianista começava uma jornada musical que continua soando embriagadora quatro décadas depois. The Köln Concert, registro lançado ainda em 1975 daquela apresentação antológica testemunhada ao vivo por mais de 1,4 mil espectadores, permanece até hoje como o disco de jazz solo e o álbum de pianista mais vendidos da história, com 3,5 milhões de unidades. O vinil também foi definitivo para cristalizar o conceito artístico e o sucesso comercial da criteriosa ECM, gravadora do produtor alemão Manfred Eicher.
Desde então, o enlevante e virtuosístico concerto de Colônia vem servindo de porta de entrada para legiões de jazzistas neófitos, integrando a trilha sonora existencial de gerações. No entanto, nem todo mundo é rendido a essa obra-prima do improviso - o próprio Jarrett está entre os que relativizam o legado. Em 2009, disse ao jornal inglês The Times que não costumava escutar a famosa gravação: "Há uma transcrição, e o YouTube está repleto de músicos que tentam reproduzir a peça, mas as pessoas que tocam não compreendem que não gosto do concerto na forma que tem. Se voltasse a gravá-lo usando a partitura, as pessoas não se conformariam com o número de notas que eliminaria. Mas isso não vai acontecer".
A epifania musical que marcou a face do jazz quase não se manifestou. Na época, o americano tinha apenas 29 anos, mas já era um nome respeitado no meio, com participações no Jazz Messengers, grupo do baterista Art Blakey, no quarteto do saxofonista Charles Lloyd (ao lado do baterista Jack DeJohnette, com quem estabeleceu uma longa e produtiva parceria) e no grupo do visionário Miles Davis - quando tocou teclados eletrônicos pela primeira e última vez na vida. A trajetória solo começou com Facing You (1971), primeiro álbum pela ECM, registrado em estúdio. A experiência abriu novos caminhos para o talento do instrumentista, que passou a apresentar-se executando peças improvisadas e a registrar essas performances. Em janeiro de 1975, em Colônia, Jarrett e Eicher estavam no meio de uma turnê pela Europa a bordo de um apertado automóvel Renault 5. O pianista chegou na cidade alemã na tarde do concerto, exausto da viagem desde Zurique, na Suíça, há dois dias sem dormir, com dor nas costas e obrigado a usar uma braçadeira. Por um mal-entendido do teatro, o piano disponibilizado para o show não era o que o convidado tinha solicitado: o Bösendorfer colocado no palco era um instrumento de ensaio, que soava metálico e sem o espectro tímbrico esperado pelo intérprete e com pedais que não funcionavam direito. Pior: não havia mais tempo para trocas.
Conhecido pelo rigor quanto aos detalhes técnicos e às condições de suas apresentações - não poucas vezes interrompeu um concerto para reclamar das tosses na plateia e dos flashes dos fotógrafos, inclusive abandonando espetáculos pela metade -, Jarrett cogitou cancelar o recital. Foi convencido a entrar em cena graças à insistência da organizadora, Vera Brandes - então a mais jovem produtora de shows da Alemanha, com 17 anos. Não ajudava nada também a ordem da noite: Jarrett estava programado para as 23h30min, depois de uma ópera - seria a primeira vez que a sisuda casa lírica receberia uma atração jazzística. Na última hora, os técnicos decidiram posicionar os microfones e gravar o show, nem que fosse apenas para documentar a sessão.
Apesar desse conturbado prólogo, a noitada iluminou-se desde o início: depois da saudação musical inesperada e espirituosa, que provocou alguns risos na plateia - audíveis no disco -, Jarrett conduziu a audiência pelas veredas erráticas de sua arte, que revelam joias sonoras por entre digressões de caráter jazzístico ou erudito, trechos lentos com motes repetitivos e mesmerizantes, passagens cantantes de lirismo arrebatador. Para compensar as deficiências do piano e realçar as notas graves, o solista investiu nos "ostinati" (repetições persistentes de uma frase musical) e insistiu em harmonias e figuras rítmicas com a mão esquerda. "Provavelmente, ele tocou daquela forma porque não era um bom piano. Porque não podia se apaixonar por ele, achou outra maneira de tirar o maior proveito dele", disse Manfred Eicher em The Art of Improvisation, documentário sobre Jarrett dirigido em 2005 por Mike Dibb.
The Köln Concert reúne os dois temas executados por Jarrett (o primeiro com pouco mais de 26 minutos, o segundo com 34), mais o bis de sete minutos. Para caber em um LP, o segundo improviso foi dividido em duas partes. Estão lá algumas das principais características de sua música, como a alternância de tempos estendidos, que deixam os acordes ressonando, com vertiginosos fraseados entrecortados, herdeiros do dinamismo do hard bop. O disco também registra grunhidos, vocalises e suspiros do inquieto artista, que costuma levantar-se da banqueta e tocar de pé em trechos mais empolgantes.
Entre os especialistas, há quem veja com restrições o pendor de Jarrett para encadear motivos melódicos sedutores ou a prolixidade de seus solos. Todos, porém, reconhecem a facilidade com que o músico coloca a serviço de seu estilo tanto o barroco de Bach e o classicismo de Mozart - Jarrett também é intérprete de música erudita - quanto o minimalismo, passando pelo jazz puro e pelos standards da canção popular. Mas talvez o principal encanto de Jarrett esteja em sua capacidade de evocar uma sensação exemplarmente capturada em The Köln Concert: a nítida impressão de estarmos presenciando, ao mesmo tempo que seu autor, o nascimento de uma obra de arte maior. "Quando penso em improvisar, penso em ir do zero ao zero, ou para onde quer que vá. Não estou ligando uma coisa a outra", explica Jarrett no filme de Dibb. Quarenta anos mais tarde, The Köln Concert ecoa como um pedaço de beleza recortado entre o começo e o fim.