A série de reportagens "40 anos da Legalidade" foi publicada em Zero Hora em agosto de 2001.
De 25 de agosto a 7 de setembro de 1961, o Brasil esteve perigosamente próximo da guerra civil. A renúncia do presidente Jânio Quadros e a negativa dos ministros militares em aceitar a posse do vice, João Goulart, o Jango, criaram um dos mais graves impasses políticos do século passado no país. No epicentro do terremoto, esteve o Rio Grande do Sul, governado por Leonel Brizola, que liderou um movimento pela posse de Jango na Presidência, com o apoio do 3º Exército — equivalente, na época, ao Comando Militar do Sul. O conflito foi provisoriamente contornado com a adoção do parlamentarismo como contrapeso ao poder de Jango.
Em 2001, 40 anos depois do último levante armado que sacudiu o Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, mentor e comandante do movimento destinado a fazer valer a Constituição com a posse de João Goulart na Presidência da República, falou com ZH e reconstituiu a estratégia da operação. A renúncia do presidente Jânio Quadros, no dia 25 de agosto de 1961, desencadeou a Campanha da Legalidade.
O Brasil e em especial o Rio Grande do Sul viveram 13 dias de tensão, mobilização e conspiração. Armados de revólveres, metralhadoras e fuzis, gaúchos civis e militares se prepararam para uma guerra que acabou não tendo um único tiro disparado e não deixou mortos nem feridos. A grande arma de Brizola estava localizada nos porões do Palácio Piratini. De um estúdio de rádio improvisado, o governador passou a se comunicar com o Estado e o país. Mais de uma centena de emissoras formaram a Rede da Legalidade, passando a retransmitir suas proclamações.
Os fatos descritos pelo líder do PDT vêm acompanhados de uma avaliação:
— A História nos deu de bandeja uma grande oportunidade que se foi. Eu próprio não tinha consciência, segurança. Não atuei com a energia que deveria ter atuado no sentido de levar João Goulart a uma atitude que pudesse ser consequente com a época que vivíamos.
A decisão de seu cunhado de aceitar chegar à Presidência sob um sistema parlamentarista, que retirava os poderes do presidente, era motivo de inconformidade. Foi o primeiro de uma série de desentendimentos que os dois passaram a ter, levando ao rompimento das relações durante os anos de exílio. O reatamento só veio pouco antes da morte do ex-presidente, em dezembro de 1976.
Jango tinha perfil oposto ao do cunhado. Conciliador, preferiu aceitar a solução parlamentarista imposta pelo Congresso para acalmar os militares a se envolver numa empreitada incerta, que poderia resultar em tragédia. Brizola defendia uma espécie de reedição da Revolução de 1930, chegando ao poder em Brasília por terra, com tropas.
Não atuei com a energia que deveria ter atuado no sentido de levar João Goulart a uma atitude que pudesse ser consequente com a época que vivíamos.
LEONEL BRIZOLA
Entrevista em 2001
Alguns oficiais da época entendem que não houve disposição do general José Machado Lopes, comandante do 3º Exército, para desmantelar a operação montada pelo governador. Com perfil contemporizador, Machado Lopes teria preferido se posicionar em favor da Legalidade, descumprindo as ordens dos ministros militares de fazer calar Brizola, a correr o risco de ser responsável por um derramamento de sangue.
Com a posse de Jango, no dia 7 de setembro de 1961, Brizola esteve no centro de uma nova campanha, desta vez para derrubar o parlamentarismo. Articulou a queda do primeiro ministro San Thiago Dantas, influenciou a indicação do amigo e jurista do PTB Francisco Brochado da Rocha para o cargo e trabalhou nos bastidores pela realização do plebiscito no dia 6 de janeiro de 1963, que restabeleceria o presidencialismo como sistema de governo.
Mas já era tarde para salvar o mandato do trabalhista João Goulart. Em abril de 1964, Brizola propôs uma nova resistência. Dispunha da rede de emissoras montada durante a Legalidade nas mãos, mas de nada adiantou. Dois anos e sete meses depois, não havia mais o fator surpresa que foi a renúncia de Jânio. Os militares já estavam articulados. Jango, pela segunda vez, preferiu ceder. Rumou para sua fazenda em São Borja e, de lá, para o Uruguai, mergulhando no exílio, de onde nunca mais retornou.
— Se o presidente fosse de outro temperamento, se soubesse que cairia numa ditadura de duas décadas, francamente teria preferido morrer resistindo — avalia o ex-governador.
A notícia da renúncia
O caudilho rebelde Leonel Rocha, que sacudiu o Estado durante a Revolução de 1923, tinha um curioso hábito. Quando pressentia algum perigo, preferia acampar a uma distância razoável da tropa. Em agosto de 1961, pouco restava do velho Rio Grande cindido pelas escaramuças entre chimangos e maragatos. A intuição do combatente, porém, parece ter inspirado um carazinhense batizado em sua homenagem: o governador Leonel Brizola.
Ao saber da renúncia do presidente Jânio Quadros, em vez de voltar ao Palácio Piratini, Brizola orientou o oficial da Brigada Militar que o acompanhava a seguir para a sede da Caixa Econômica Estadual, na esquina das ruas Doutor Flores e Andradas, de onde passou a despachar.
A solenidade do Dia do Soldado desenrolava-se na manhã chuvosa do dia 25 de agosto, no Parque da Redenção, num palanque montado à Avenida José Bonifácio. Brizola, autoridade civil máxima no ato, reparou quando o general Antônio Carlos Muricy foi ao encontro do comandante do 3º Exército, general José Machado Lopes, e cochichou ao seu ouvido. O semblante de Machado Lopes tornou-se carregado e, passados alguns minutos, ele determinou ao oficial responsável pelas festividades o encerramento, alegando que a tropa e a população estavam sendo sacrificadas pela chuva. As mesmas explicações foram repassadas a Brizola, sem maiores comentários.
Já instalado no gabinete do conselho da Caixa, Brizola recebeu um telefonema do assessor Carlos Contursi comunicando a notícia da renúncia de Jânio. Mesmo ciente do desgaste do presidente, com quem mantinha bom entendimento administrativo, Brizola encarou a informação como mais um dos tantos boatos que percorriam o país nos últimos dias, fruto da instabilidade político-econômica. Não demorou para Contursi e outro assessor de imprensa, Hamilton Chaves, aparecerem com novas informações, desta vez obtidas diretamente com a agência de notícias France Presse.
A primeira reação do governador foi pegar o telefone vermelho, ligado diretamente ao QG do Exército, e falar com Machado Lopes, que confirmou a notícia.
O general brincou, lembrando que se Jânio aparecesse em Porto Alegre no dia seguinte, um sábado, ambos poderiam até recebê-lo, mas como cidadão comum. Estava prevista para o dia 26 a chegada do presidente à Capital, onde instalaria o governo por alguns dias, como havia feito em outros quatro Estados. Nessas reuniões, Jânio verificava os problemas das regiões e dialogava com os governadores, sem intermediação de políticos. Ficaria hospedado na residência do general, na Avenida Cristóvão Colombo.
Uma das exigências de Jânio era que fosse colocada em seu quarto todas as noites uma garrafa de vinho do Porto Lacrima Christi, que o Exército mandou trazer de São Paulo. Posteriormente, Machado Lopes presenteou Brizola com uma garrafa do vinho.
Brizola voltou a procurar Machado Lopes quando soube que os ministros militares consideravam inconveniente o retorno ao Brasil do vice-presidente João Goulart, em viagem oficial ao Oriente. No novo diálogo, o general foi seco e evasivo. Limitou-se a dizer que, como soldado, ficaria ao lado do Exército. Ao que Brizola replicou: como civil, eleito governador legalmente, ficaria com a Constituição.
As unidades do Exército, da Marinha e da Aeronáutica se encontravam de prontidão, conforme ordens da cúpula militar. No Piratini também estavam sendo tomadas providências, com deslocamento de contingentes da Brigada Militar de Caxias do Sul, Pelotas, Santa Maria e Montenegro para Porto Alegre.
Corria a tarde e uma série de contatos foi feita pelo governador, incluindo um com o secretário de Imprensa da Presidência, Carlos Castelo Branco, que estava com Jânio na Base Aérea de Cumbica. O presidente não falou por telefone. Brizola queria saber se Jânio havia sido derrubado do poder e ofereceu-lhe abrigo no Rio Grande. Jânio mandou agradecer-lhe: a decisão era irreversível.
— Mas não há mais nada a fazer? — insistiu Brizola.
— Não há mais nada a fazer — respondeu Castelo Branco.
O governo divulgou nota defendendo a posse do vice. Os primeiros populares começaram a chegar à Praça da Matriz. Estava lançada a Campanha da Legalidade.
Brizola aplaudiu Che em cúpula americana
Punta del Este, julho de 1961. O guerrilheiro Ernesto Che Guevara, um dos líderes da revolução que levou Fidel Casto ao poder em Cuba, em 1959, encerrou um inflamado discurso anti-Estados Unidos diante da conferência de cúpula de países americanos. Afora a delegação cubana, apenas uma pessoa se ergueu para aplaudir Che: o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola.
No auge da Guerra Fria, a reunião do Conselho Interamericano Econômico e Social destinava-se a discutir a Aliança para o Progresso, programa do presidente americano John Kennedy que previa liberação de verba para a América Latina. Único integrante da comitiva brasileira claramente de oposição ao governo federal, o gaúcho de 39 anos foi a Punta a convite do próprio presidente Jânio Quadros, que havia determinado ao grupo a rejeição à proposta de exclusão de Cuba da Organização dos Estados Americanos (OEA). A comitiva adotou postura diferente. Sob o comando do ministro da Fazenda, Clemente Mariani, a delegação se aliou aos Estados Unidos na proposta de exclusão de Cuba. Em conversa com Che — na época ministro da Economia —, Brizola soube que todos os países, inclusive o Brasil, tinham posição favorável à medida.
Ao ser questionado sobre a mudança, Mariani alegou a Brizola o quão complicada era a política internacional, ainda mais para um político jovem como o governador. Disse que Jânio havia mudado de posição ao ser informado com maiores detalhes do que estava sendo debatido na conferência. O governador gaúcho abandonou a comitiva e retornou ao Estado.
No regresso a Cuba, Che passou pela Argentina, onde foi recebido pelo presidente Arturo Frondizi. A presença do cubano provocou indignação nas Forças Armadas argentinas. Depois, Che seguiu para Brasília, conforme havia combinado previamente com Jânio. No dia 19 de agosto, foi condecorado com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. A guinada esquerdista do presidente deixou em polvorosa os militares e ainda mais desconfiada a opinião pública. Jânio vinha mantendo uma política externa independente, reatando relações comerciais com países socialistas como Cuba e União Soviética.
Mais tarde, Brizola perguntou a Jânio, já longe do poder, num encontro em São Paulo, por que havia mudado de posição em relação a Cuba.
— Traíram-me, Brizola, traíram-me — respondeu.
Um diálogo áspero com Costa e Silva
Uma discussão entre gaúchos retrata os momentos de tensão e polêmica que antecederam o movimento da Legalidade. Com Arthur da Costa e Silva, um dos generais aos quais recorreu nas primeiras horas após a renúncia de Jânio Quadros, o governador Leonel Brizola enfrentou forte resistência.
Natural de Taquari e comandante do 4º Exército, em Recife, Costa e Silva viria a ser, em 1967, o segundo presidente do regime militar. Durante seu governo, seria editado o Ato Institucional nº 5 (AI-5), dando ao presidente o poder de fechar o Congresso e de cassar mandatos.
O líder do PTB imaginava que, apelando para as raízes gaúchas do general, conseguiria convencê-lo a interferir na decisão do ministro da Guerra, Odílio Denys, de impedir a posse do vice-presidente João Goulart. O general disse que sua posição era de cumprir ordens do Exército. Rispidamente, pediu que não o procurasse mais. Foi o tempo de o governador chamá-lo de traidor da Pátria e golpista e de Costa e Silva bater o telefone.
Os desconcertantes sete meses de Jânio no poder
O advogado e professor de Português Jânio Quadros foi um dos presidentes mais controvertidos do Brasil. Com perfil populista e avesso a partidos e conchavos, elegeu-se em 3 de outubro de 1960 sucessor do presidente Juscelino Kubitschek (PSD) com uma votação arrasadora: 48% dos votos (5,6 milhões) contra 28% obtidos pelo marechal Henrique Teixeira Lott (PSD-PTB).
Apesar de ter disputado por uma legenda nanica, o PTN, Jânio contou com o influente apoio da UDN de Carlos Lacerda. Maior expressão da direita, a UDN viu no populismo de Jânio uma forma de chegar ao poder, depois de fracassadas tentativas anteriores de concorrer com Eduardo Gomes (1950) e Juarez Távora (1955). A legislação permitia que o eleitor votasse separadamente no presidente e no vice. Acabou Jânio eleito por um grupo de forças, e o vice, João Goulart (PTB), por outro.
Jango, que já tinha sido vice-presidente de Juscelino, fazia dobradinha com Lott em 1960. Jânio e Jango assumiram em 31 de janeiro de1961. O presidente foi empossado com um discurso de saneamento semelhante ao da cartilha do FMI. Entretanto, adotou uma política externa independente, restabelecendo relações comerciais e diplomáticas com os países socialistas.
A aliança com a UDN durou pouco. O estilo personalista do presidente o levou a escolher um ministério sem consultar seus apoiadores. Com um linguajar rebuscado e fama de beberrão, Jânio marcou sua rápida passagem por Brasília com ações insólitas. Governou por meio de bilhetes endereçados aos ministros e proibiu briga de galos de rinha, corridas de cavalos em dias úteis e uso de biquínis nas praias. Não demorou a ter um Congresso hostil ao seu governo. Como presidente, esteve no Estado duas vezes — na Festa daUva, em Caxias, e num encontro com o presidente da Argentina, Arturo Frondizi, em Uruguaiana. Em ambas as ocasiões foi acompanhado pelo governador Leonel Brizola (PTB).
O líder gaúcho havia sido um duro adversário de Jânio nas eleições. Administrativamente, mantiveram relações amistosas. Jânio renunciou depois de sete meses, alegando um complô de "forças terríveis". A história mostra que ele planejava voltar com o Congresso dissolvido ou a Constituição modificada para lhe dar plenos poderes. Imaginava que as forças conservadoras não permitiriam a ascensão de Jango, tachado de comunista desde o tempo em que era ministro do Trabalho do governo Vargas. A população não clamou pelo seu retorno.
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