A série de reportagens "40 anos da Legalidade" foi publicada em Zero Hora em agosto de 2001.
O avião Caravelle pousou no aeroporto Salgado Filho às 20h20min do dia 1º de setembro trazendo um futuro presidente da República decidido a governar com poderes limitados. O Estado escolhido por João Goulart como porta de entrada havia se transformado ao longo daqueles sete dias de regresso da China. Armados e entrincheirados, os gaúchos estavam convencidos de que poderiam levar um conterrâneo à Presidência da República pela força e a coragem.
O governador Leonel Brizola já sabia que seu cunhado chegaria de Montevidéu convencido pelo deputado Tancredo Neves a aceitar o sistema parlamentarista de governo. No mesmo dia pela manhã, Jango conversou longamente com o deputado mineiro na embaixada do Brasil, na capital uruguaia. No caminho do aeroporto para o Palácio Piratini, Brizola constatou pessoalmente que o cunhado havia empenhado a palavra a Tancredo. O parlamentarismo — sistema que concentra poderes no parlamento — foi a solução encontrada em Brasília para resolver o impasse criado com o veto dos militares à posse de Jango.
Numa reunião a portas fechadas no seu gabinete, na presença de Jango, do comandante do 3º Exército, general Machado Lopes, e dos secretários de Estado Brochado da Rocha e João Caruso, Brizola entregou um papel onde constava sua posição: chegar até Brasília por terra com tropas civis e militares, a exemplo que ocorreu na Revolução de 1930, dissolver o Congresso e convocar uma Constituinte.
Pelos cálculos de Brizola, havia reserva de combustível para 14 dias. O Exército e a Brigada Militar tinham armamento para 110 mil homens. A tropa civil seria selecionada entre os milhares de gaúchos alistados nos comitês de resistência democrática.
Antes de deixar a sala e se recolher à ala residencial, Brizola disse que respeitava a posição do futuro presidente de aceitar as regras do parlamentarismo e que não criaria dificuldades. Há dias Brizola não sabia mais o que era deitar numa cama e dormir profundamente.
— Aquele Congresso havia rasgado a Constituição numa madrugada, adotando um parlamentarismo espúrio — contou Brizola a ZH, em 2001.
Vejo que eu deveria ter sido mais persuasivo, mais enérgico na minha posição de defesa do presidencialismo.
LEONEL BRIZOLA
Entrevista em 2001
Já era tarde da noite quando a mulher de Brizola, Neusa, entrou no quarto e disse ao marido que Jango estava desolado, pois havia sido maltratado pelo povo. Na sua chegada, Jango e Brizola foram à sacada do Piratini, depois de horas de expectativa. Jango apenas acenou. Não houve discursos. Palavras ofensivas foram proferidas, cartazes com a foto de Jango rasgados, faixas enroladas, choro dentro e fora do palácio.
— Vejo que eu deveria ter sido mais persuasivo, mais enérgico na minha posição de defesa do presidencialismo — avaliou Brizola, à época da entrevista a ZH.
O governador preferiu concentrar suas forças na derrubada do parlamentarismo, que veio a ocorrer em 6 de janeiro de 1963 com a realização de um plebiscito nacional.
Rio Grande se prepara para repelir ataque
O apoio do 3º Exército à tese de fazer valer a Constituição com a posse de João Goulart na Presidência da República transformou o Rio Grande do Sul numa grande trincheira. As informações cada vez mais desencontradas que chegavam ao Palácio Piratini e ao Quartel-General (QG) do Exército indicavam o deslocamento de tropas federais para o Estado.
A Brigada Militar, por meio de seu comandante, coronel Diomário Moojen, havia pedido ao general Machado Lopes que colocasse os soldados da sua corporação no ponto mais nevrálgico do Estado.
A posição assumida pelo 3º Exército levou o ministro da Guerra, Odílio Denys, a nomear o general Cordeiro de Farias para o lugar de Machado Lopes. O oficial não chegou a entrar em solo gaúcho, pois soube antes que seria preso. O 3º Exército temia a entrada da Marinha — principalmente do 5º Distrito Naval, com base em Santa Catarina — e da quase totalidade da Aeronáutica. O governador do Estado vizinho, Celso Ramos, estava acuado. As Forças Armadas pressionavam o governo catarinense a se declarar contra a posse de João Goulart na Presidência.
Uma das principais frentes militares foi deslocada para o Litoral Norte. Batalhões da Brigada Militar ficaram guarnecendo a região de Torres, próximo ao Rio Mampituba, e o Exército alcançou a fronteira com Santa Catarina.
Sob chuva intensa, os soldados passaram 10 dias abrindo trincheiras para manter a tropa em movimento. As notícias indicavam a aproximação do temido porta-aviões Minas Gerais.
Numa dessas noites de vigília chegou a notícia de que finalmente chegara o momento do confronto entre legalistas e forças federais. Pelas informações obtidas pelo comando militar da Legalidade,"mar estava grosso", ou seja, apinhado de fuzileiros navais.
— A invasão não veio, mas entrou para história da BM como sendo a Lenda do Mar Grosso —contou o tenente-coronel reformado Antônio Silveira da Silva a ZH em 2001.
No regresso da missão, os soldados da Brigada Militar foram homenageados em Porto Alegre pelas autoridades com um desfile pela Avenida Borges de Medeiros.
Crise tirou dinheiro de circulação no Estado
O Rio Grande do Sul viveu tempos de guerra durante a Campanha da Legalidade. As relações deterioradas com o governo provisório de Ranieri Mazzilli, sustentado pela cúpula das Forças Armadas, deixou o Estado em meio à crise, com escassa reserva financeira.
O dinheiro depositado nos cofres das instituições federais — Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e Delegacia Fiscal — foi transportado para Brasília. A escassez de moeda levou o governo gaúcho a se utilizar de uma lei sancionada pelo próprio Brizola, em 1959, que autorizou o Executivo estadual a emitir Letras do Tesouro. Era um sistema de títulos de curto prazo e que valia para pagamento de impostos, taxas e dívidas fiscais com o Estado.
Numa reunião no Palácio Piratini com representantes da associação comercial, das federações rural e da indústria, da Assembleia Legislativa, do Judiciário e da Igreja ficou decidido que as letras passariam a ser impressas em maior número e aceitas como moeda no Estado. Só poderiam ser utilizadas, porém, para pagamento à vista.
Quando chegou a Montevidéu, Jango pediu por telefone a Brizola que trouxesse o banqueiro e ex-embaixador nos Estados Unidos Walther Moreira Salles a Porto Alegre. Tão logo o banqueiro desembarcou na Capital, Brizola pediu-lhe que fosse mandado de volta o dinheiro retirado dos bancos federais, medida tomada logo após a posse de Jango.
A indicação de Moreira Salles para o Ministério da Fazenda era uma tentativa de acalmar o mercado internacional, que acompanhava sobressaltado a crise desde a renúncia de Jânio Quadros. Os Estados Unidos viam com preocupação a parcela esquerdista da frente política que apoiava a posse de Jango e a defesa do vice-presidente feita pelos governos soviético e cubano.
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