A série de reportagens "O Baú de Brizola" foi publicada em Zero Hora em outubro de 2005.
Era com misto de orgulho e mistério que Leonel Brizola se referia nos últimos anos de vida ao que chamava de seu "pequeno baú de recordações". A quem tentasse buscar detalhes, saía-se com uma resposta que atiçava ainda mais a curiosidade:
— Na verdade, nem eu sei direito o que tenho guardado.
Brizola morreu vítima de infarto há 20 anos, em 21 de junho de 2004, aos 82 anos, sem nunca ter permitido que revirassem o seu "pequeno baú". Entre maio e junho de 2005, com o consentimento da família, Zero Hora teve acesso aos arquivos do líder trabalhista. Na realidade, um vasto acervo espalhado por três residências — a de Montevidéu, no Uruguai, e as de Copacabana e Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Composto por documentos, cartas, fotos, diplomas, objetos, jornais, revistas, livros e fitas, o acervo contempla praticamente todas as fases da vida pública e privada do ex-governador.
Foi principalmente a partir do exílio — de 1964 a 1979— que o ex-presidente nacional do PDT passou a guardar tudo que pudesse ter valor biográfico. Brizola mergulhou no exílio em maio de 1964, deixando no Brasil todos os pertences. As residências de Porto Alegre e do Rio — na época, o trabalhista era deputado federal pelo antigo Estado da Guanabara — foram invadidas pelos órgãos de repressão. Os documentos do período que antecedeu o golpe militar foram quase todos resgatados posteriormente, com ajuda de amigos e colaboradores.
A quantidade e o tipo de material recolhido revelam um político decidido desde muito jovem a escrever suas memórias, embora jamais admitisse o projeto em público. Em agosto de 2001, numa homenagem na Assembleia Legislativa gaúcha pelos 40 anos da Legalidade —movimento liderado por Brizola em 1961 para garantir a posse de João Goulart na Presidência—, disse que resistia em abrir seu baú e escrever um livro. Se fizesse isso, justificou, daria a impressão de estar pendurando as chuteiras. Brizola não aceitava a ideia de se aposentar da política.
— Serei como um cavalo inglês. Só vou morrer na cancha — avisava em 1998 aos que previam que ele sairia de cena para virar personagem da História depois da derrota da chapa Lula-Brizola para Fernando Henrique Cardoso na eleição presidencial.
Lençóis protegiam o acervo da curiosidade de visitantes. Na privacidade de seu apartamento da Avenida Atlântica, em Copacabana, vinha remexendo armários nos anos que antecederam sua morte. Sentado a uma mesa redonda de madeira, na sala de jantar, passava as noites examinando documentos e fazendo anotações. Aos poucos, caixas e pastas foram invadindo uma das salas de estar, que fica ao lado da de jantar. Impossibilitado de recolher todo o material às peças íntimas da casa a cada visita que recebia, orientava a governanta, dona Selma, a cobrir as montanhas de papel com lençóis para não despertar a curiosidade dos convidados.
Se já havia decidido ou não, o fato é que Brizola morreu sem revelar aos filhos — José Vicente, João Otávio e Neusa Maria — quando escreveria suas memórias. O primogênito e a caçula morreram nos anos de 2012 e 2011, respectivamente.
Nem familiares tinham acesso a documentos
Quanto mais documentos guardava, maior era o mistério que Leonel Brizola fazia sobre seus arquivos. Da governanta, passando pelos auxiliares mais próximos até os filhos e netos, ninguém podia tocá-los. Sempre com uma dose de humor, recusava quando alguém de sua intimidade oferecia ajuda para organizar o que parecia não ter fim.
— Está me agourando? — costumava brincar com o seu secretário particular Eduardo Bastiani, que via com o passar dos anos documentos se avolumarem pelo apartamento de Copacabana.
O próprio secretário — braço direito desde os tempos em que Brizola era governador do Rio — havia sido encarregado de descongestionar a residência da Avenida Atlântica levando dezenas de caixas com papéis para a casa do bairro Santa Teresa.
Em 2004, Zero Hora procurou Juliana Daudt Brizola, neta do ex-governador, e solicitou permissão para examinar o acervo do líder trabalhista. A família ainda não tinha noção do que havia guardado, muito menos que destino daria ao material. Em março de 2005, ZH retomou os contatos. Além de Juliana, a reportagem consultou também o arquiteto João Otávio, filho do meio de Brizola, que morava no Uruguai e era uma espécie de gerente do espólio do pai.
Convencidos da relevância histórica dos arquivos, os filhos deram sinal verde para o trabalho de ZH, que começou por Montevidéu a análise dos documentos. A viagem ao Uruguai, ocorrida em 19 de maio, durou três dias. No apartamento da Rambla Armenia, em Pocitos, predominam os documentos relacionados aos negócios particulares naquele país. Lá também se encontram a correspondência da mulher, Neusa, álbuns de fotografia, diplomas, medalhas e parte dos documentos do governo do Rio Grande do Sul.
O acervo estava praticamente todo concentrado em um dos quatro aposentos, onde funcionava o escritório de Brizola. Uma pequena estante com não mais de 200 livros, dois armários brancos e uma escrivaninha, além de caixas e sacolas empilhadas, compunham o ambiente. Até a mala que Brizola usou em 1936, aos 14 anos, quando se mudou de Carazinho para Porto Alegre, serviu para guardar recordações.
Para o Rio, ZH fez duas viagens, a primeira no dia 1º de junho de 2005, e a segunda, no dia 14 de junho daquele ano. No edifício da Avenida Atlântica, onde Brizola morava desde o início dos anos 1980, estava a maior parte do acervo, armazenado em cinco ambientes do apartamento do sétimo andar. Ao longo dos anos Brizola foi organizando os documentos em pastas e envelopes, todos identificados por assunto. Depois de entupir armários e estantes, passou a comprar caixas retangulares de plástico verde com tampas para acondicionar a papelada. Como dispensava qualquer tipo de ajuda, parte dos documentos ainda se encontrava guardada de forma precária numa área de serviço, junto a sucatas de eletrodomésticos, como um aparelho de TV antigo adquirido por ele e Neusa.
Arquivo abrange amores e ódios
Um político emotivo, por vezes indignado, outras irônico e implacável, se revela na forma como o ex-governador Leonel Brizola catalogava seus arquivos. Aos adversários, reservava anotações ácidas. Na organização dos documentos, identificava muitos deles com a palavra "traidor".
Brizola tinha uma lista de inimigos tão vasta quanto a de admiradores. A importância que dispensava aos opositores podia ser medida pela quantidade de material recolhido. Nesse quesito, o ex-governador do Rio Anthony Garotinho ocupava lugar de destaque. De todas as brigas que teve com correligionários ao longo de décadas, a com Garotinho foi a que mais estragos provocou no PDT. A indiferença em relação a determinados políticos — geralmente de pouca expressão — ficava evidente pelas dezenas de cartas arquivadas, porém nunca abertas.
A troca de acusações com seus oponentes se dava em público e também por cartas reservadas. O ex-prefeito do Rio, Cesar Maia, pupilo de Brizola até romper com o PDT, em 1991, também tem lugar de destaque no acervo. Em meio a recortes de jornais e relatórios sobre o prefeito, há uma carta que mereceu de Brizola o registro de "confidencial".
Em 2000, em plena campanha à prefeitura, Maia fez críticas à política de segurança de Brizola no segundo mandato de governador (1991-1994). Diante da repercussão, mandou fax ao ex-governador em 10 de julho daquele ano se desculpando: "Sempre disse — e reafirmo agora — que os problemas que me afastaram do senhor foram exclusivamente políticos. Se a metáfora que usei com o objetivo de criticar a sua política de segurança foi, por quem quer que seja, entendida além daqueles limites, julgo dever-lhe mais do que uma explicação. Devo-lhe desculpas", diz um trecho.
O líder trabalhista dava solenidade à parte afetiva do seu acervo. Desenhos dos netos, fotos românticas com a mulher, Neusa, e cartas íntimas estavam em um dos armários. Os filhos sabiam da existência das cartas que Brizola mandava para a mãe, Oniva, nos anos 1930 e 1940, mas só as viram depois da morte do pai.
Aos 14 anos, Brizola deixou Carazinho rumo à Capital munido de uma mala e uma carta de recomendação do prefeito. Morou de favor nos primeiros anos. Trabalhou como operário em uma refinaria e depois como jardineiro na prefeitura. Estudou à noite no Colégio Júlio de Castilhos e serviu na Base Aérea de Canoas. O esforço foi coroado com a entrada na Faculdade de Engenharia da UFRGS, em 1942. As dificuldades financeiras e profissionais são relatadas nessas correspondências.
Brizola reservava parte do salário para ajudar a mãe, que continuou morando em Carazinho. Às vezes não sobrava nada no final do mês, e o filho se explicava. Numa das primeiras cartas, ainda na década de 1930, o estudante conta como foi a sensação de provar pela primeira vez uma pasta de dente.
Uma das paixões de Brizola era a estância El Repecho (que em espanhol significa “encosta”, “declive”), no vilarejo de Carmen, departamento de Durazno, adquirida quando esteve exilado no Uruguai. Em março de 2004, ele vendeu a sede da fazenda e parte das terras. A entrega do imóvel aos novos donos só ocorreu depois de sua morte. Lá não havia documentos políticos, apenas objetos, como o capacete da Brigada Militar que o ex-governador usou quando deixou o país em maio de 1964, fugindo da ditadura militar.
Um ensaio de reforma agrária
Um plano pioneiro e audacioso de reforma agrária foi engendrado nos gabinetes do Palácio Piratini entre 1960 e 1962. O então governador Leonel Brizola decidiu pôr em prática um rol de medidas que terminaram rendendo processos judiciais e polêmica de sobra na imprensa.
A história das primeiras desapropriações de terras e o embrião do hoje Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) repousavam numa estante no gabinete de Brizola no seu apartamento de Copacabana. Em 7 de agosto de 1961, o governador instituiu um grupo de trabalho ligado ao Conselho de Desenvolvimento do Estado. O grupo tinha a missão de estudar um plano de colonização. Começava ali a reforma agrária de Brizola.
Embora o grupo fosse composto por dois simpatizantes do Partido Comunista Brasileiro — Cibilis Viana e Paulo Schilling, assessores do governador —, por orientação de Brizola o plano não podia prever confisco puro e simples de terras. Para enfrentar o problema agrário, procurou-se uma solução que não entrasse em confronto com a Constituição, que determinava a indenização imediata dos proprietários.
A saída foi a criação de um imposto compulsório sobre proprietários de terras e de loteamentos. Outra medida seria o empréstimo compulsório sobre a indústria, o comércio e os bancos. A terceira fonte de recursos viria de parte do dinheiro do programa Aliança para o Progresso, plano do presidente John Kennedy que previa liberação de dinheiro para os países da América Latina a fim de impulsionar o desenvolvimento econômico-social, que seria aplicado na reforma agrária em todo o país.
As medidas acabaram não sendo aplicadas pelo governador, que procurou uma fórmula mais conservadora, com o pagamento de indenizações. A primeira desapropriação foi feita em Camaquã, na localidade de Banhado do Colégio, um pântano drenado nos anos 1950. A segunda foi no município de Sarandi. Brizola guardou em seus arquivos parte dos processos judiciais contra o Estado em razão das desapropriações.
O respaldo ao governo viria do Movimento Estadual dos Agricultores Sem Terra, Pequenos e Médios Proprietários Rurais do Rio Grande do Sul (Master), o precursor daquele que duas décadas depois viria a ser o MST.
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Linha do tempo
Dos 82 anos de vida, Leonel Brizola dedicou 60 à carreira pública
- 1922 — Em 22 de janeiro, no povoado de Cruzinha, Carazinho, nasce Leonel de Moura Brizola, filho de José e Oniva.
- 1936 — Deixa Carazinho para tentar a vida em Porto Alegre.
- 1942 — Depois de cursar à noite o colegial supletivo, no Colégio Júlio de Castilhos, e prestar serviço militar na Base Aérea de Canoas, forma-se piloto privado. Ingressa na Faculdade de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, cujo curso completa em 1949.
- 1945 — Com um grupo de sindicalistas, funda o primeiro núcleo gaúcho do Partido Trabalhista Brasileiro. No ano seguinte é escolhido presidente da Ala Moça do PTB e passa a liderar comícios, despertando a atenção de Getúlio Vargas.
- 1947 — Elege-se deputado estadual.
- 1950 — Em 1º de março, casa-se com Neusa Goulart, irmã do ex-presidente João Goulart, tendo Getúlio Vargas como padrinho de casamento. Vargas se elegeria presidente em outubro daquele ano.
- 1951 — Concorre à prefeitura de Porto Alegre pelo PTB, mas é derrotado por uma pequena margem de votos pela aliança PSD-UDN-PL.
- 1952 — Assume a Secretaria de Obras Públicas do governo Ernesto Dornelles (PTB).
- 1954 — Quarenta dias depois do suicídio de Vargas, é eleito deputado federal.
- 1955 — É eleito prefeito de Porto Alegre pelo PTB com o slogan Nenhuma Criança sem Escola.
- 1958 — Aos 36 anos, com 670 mil votos, elege-se governador do Rio Grande do Sul.
- 1961 — Com a renúncia de Jânio Quadros em 25 de agosto, lidera um movimento no Rio Grande do Sul, conhecido como Campanha da Legalidade, para garantir a posse do vice-presidente João Goulart, que sofria resistência no meio militar.
- 1962 — Elege-se deputado federal pelo Estado da Guanabara, com a maior votação alcançada até então por um parlamentar no país.
- 1964 — Com o golpe militar, o inimigo número 1 do novo regime é obrigado a seguir os passos de João Goulart e deixar o Brasil.
- 1977 — É expulso do Uruguai pelo governo daquele país. Consegue asilo político nos Estados Unidos.
- 1979 — Depois de 15 anos de exílio, retorna ao país em setembro amparado pela Lei da Anistia.
- 1980 — Tenta resgatar a sigla PTB, que acaba ficando com o grupo da ex- deputada Ivete Vargas. Cria então o PDT.
- 1982 — É eleito primeiro governador do Rio pela via direta desde que Negrão de Lima conquistara o governo da antiga Guanabara, em 1965.
- 1989 — Na primeira eleição direta para presidente da República depois do regime militar, Brizola fica em terceiro lugar. Uma pequena margem de votos o separa do segundo colocado, Luiz Inácio Lula da Silva, que disputou o segundo turno com Fernando Collor.
- 1990 — Pela segunda vez vence a eleição para governador do Rio.
- 1994 — Disputa pela segunda vez a eleição presidencial, ficando em quinto lugar com uma votação inexpressiva, sem paralelo na sua carreira.
- 1998 — Concorre a vice de Lula na eleição presidencial. A dupla perde já no primeiro turno para Fernando Henrique Cardoso, que vence pela segunda vez consecutiva.
- 2000 — Concorre a prefeito do Rio, ficando na quarta colocação.
- 2002 — Candidata-se pela última vez, disputando uma vaga ao Senado pelo Rio. Amarga o sexto lugar. Na disputa à Presidência, apoia no primeiro turno Ciro Gomes (PPS). No segundo turno, vota em Lula. Depois do primeiro ano de governo, rompe com o presidente Lula e passa a fazer-lhe oposição.
- 2004 — Em 21 de junho, depois de ser internado às pressas no Hospital São Lucas, no Rio, com infecção pulmonar, sofre um infarto, morrendo às 21h20min.