Promiscuidade no lugar de independência, populismo em detrimento de discrição, individualismo em vez de colegialidade e coerência. Essas são algumas das patologias que Conrado Hübner Mendes, 46 anos, um dos observadores mais atentos do Judiciário brasileiro, identifica nos tribunais superiores, em especial o Supremo Tribunal Federal (STF). Professor de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo (USP), colunista da Folha de S. Paulo, ele lançou, em 2023, O Discreto Charme da Magistocracia – Vícios e Disfarces do Judiciário Brasileiro, que reúne 88 textos de jornal publicados ao longo de mais de uma década e que compõem um panorama crítico do protagonismo exercido pelo poder, para o bem e para o mal, em alguns dos mais importantes acontecimentos da história recente do país. Na entrevista a seguir, Hübner Mendes comenta o tensionamento entre STF e Congresso e as indicações mais recentes de ministros, entre outros temas.
O STF foi o poder mais atacado nos atos de 8 de janeiro de 2023 e, meses atrás, um advogado afirmou que os ministros são as pessoas mais odiadas do país. Exageros à parte, em que medida essa rejeição em alguns setores é resultado de uma estratégia política voltada a enfraquecer as instituições e em que medida é efeito de erros do próprio STF?
É preciso distinguir o ódio da opinião crítica. A crítica embasada, honesta, construtiva tem sido feita, sobretudo, pela pesquisa acadêmica e por observadores mais cuidadosos da Justiça, e vem ganhando volume há pelo menos 10 anos. E essa crítica é importante porque aponta não só as patologias que o Supremo sempre teve, mas as que foram se aprofundando nesse período. E são críticas às quais o Supremo se faz, na maior parte do tempo, surdo, indiferente. Outra coisa, que com certeza faz parte de uma estratégia política, é a disseminação do ódio ao STF. Ocorre que uma das patologias dessa Corte é o individualismo. O Supremo funciona muito menos como instituição e muito mais por meio de juízes individuais que tomam decisões monocráticas, aparecem muito em público e se veem como atores políticos. Essa individualização facilita a disseminação do ódio. Em vez de dizer “vamos fechar o Supremo”, Bolsonaro disse: “Alexandre de Moraes, não vou mais obedecer as suas decisões”. A frase é muito sintomática dessa patologia. É parte de uma estratégia, porque, com a disseminação de ódio, a Corte é colocada sob pressão. E ao colocar a Corte sob pressão, você obtém, disfarçadamente ou não, concessões, pois a Corte perde força. Se por um lado o governo Bolsonaro nunca teve força para um ato mais forte de restrição ou desobediência ao STF, do ponto de vista discursivo, ele tentou, sim, intimidar o Supremo, e é superficial concluir que o Supremo não foi intimidado.
No ano passado, houve uma situação em que o STF tomou uma decisão em relação ao marco legal para demarcação de terras indígenas e, no dia seguinte, o Congresso decidiu na direção contrária. O senhor afirma no livro que a função do Supremo é mal compreendida e que, em qualquer regime democrático, as cortes legislam – opondo-se, portanto, à crítica que se tornou comum de ativismo judicial. Isso significa que é preciso encarar com naturalidade essa disputa pela palavra final ou há como delimitar o limite de cada um?
Em nenhum momento eu digo que o Supremo não tenha abusado do seu poder. Um exemplo é quando intervém drasticamente no controle de constitucionalidade por meio de decisão monocrática. Mais do que isso, quando não produz um argumento constitucional consistente, que não é só um bom argumento, mas um argumento coerente com as decisões que tomou no passado. Um tribunal se torna explicitamente arbitrário quando aquilo que decidiu hoje é muito diferente e incoerente com aquilo que decidiu ontem. Acho que é muito mais produtivo o debate sobre a consistência e coerência da jurisprudência construída pelo Supremo do que ficar discutindo o limite entre interpretar a Constituição e legislar. Esse debate é uma armadilha, e é por isso que não considero que decisões ousadas de uma Corte constitucional sejam ativismo no sentido de violação da prerrogativa do parlamento. Controlar o parlamento é função dos tribunais.
Foram notórios os casos em que os ministros se valeram da prerrogativa de pedir vista para obstruir julgamentos e engavetar discussões, o que o senhor critica no livro. Em que medida isso foi corrigido com a alteração regimental promovida durante a presidência de Rosa Weber que estabeleceu um prazo para esse tipo de pedido?
Ainda é cedo para estabelecer uma conclusão definitiva. Por um lado, o prazo pode provocar uma revolução em algo que era patológico. O pedido de vista podia segurar um caso por 10 anos, então estabelecer um prazo de 90 dias resolve. Não resolve a liminar monocrática, mas resolve essa via de obstrução individual. Digo que é cedo para concluir porque essa resolução se aplica aos pedidos feitos depois dela. Os pedidos que já estavam na gaveta antes continuaram lá. Então, vamos precisar de tempo para analisar.
O Supremo funciona muito menos como instituição e muito mais por meio de juízes individuais que tomam decisões monocráticas, aparecem muito em público e se veem como atores políticos.
O presidente do STF ainda detém poder absoluto sobre a pauta. O atual presidente, Luís Roberto Barroso, disse, por exemplo, que a descriminalização do aborto não retornará ao plenário em 2024. A que tipo de regramento a definição da pauta deveria estar sujeita?
Por mais que os ministros retoricamente reclamem da quantidade de casos que julgam, nunca fizeram um esforço para filtrar melhor os recursos, porque isso, de alguma forma, dá poder a eles. Ter um oceano de casos na mesa e ficar pinçando o que quer julgar é uma forma de poder. De fato, são muitos casos e muito diferentes entre si. Há casos de constitucionalidade centrais para o país e casos de ladrão de xampu no mercado. É preciso um critério, e hoje não há critério algum. A definição da pauta se dá pela absoluta discricionariedade do presidente. Barroso pode livremente dizer que não vai decidir o aborto. Há 15 anos, Marco Aurélio Mello pôde livremente dizer que não soltaria o caso do aborto de anencéfalos, porque ele, pessoalmente, sozinho, achava que o Brasil não estava preparado. Isso é patológico. Acho que, no mínimo, uma Corte deveria debater explicitamente os seus critérios. Segundo, deveria haver um modo de definir a pauta que fosse colegiado e não concentrado na mão de um único ministro. E, terceiro, que se mesclasse o respeito à cronologia dos casos, uma espécie de fila de chegada, a um critério complementar de exceções, em razão da urgência.
Um tema recorrente nos textos são as relações promíscuas entre ministros e membros do setor empresarial e das elites políticas. A origem desse problema está na forma como os ministros chegam à Corte, por indicação do presidente?
Não necessariamente. É claro que o modo de nomeação pode facilitar que isso aconteça. Mas depende muito de como se porta o presidente. Vejamos o Lula, que tem um histórico longo de nomeações de ministros. Quando ele nomeou Joaquim Barbosa, Cezar Peluso, Menezes Direito, Cármen Lúcia, existia um certo respeito à instituição do STF, gostemos ou não desses nomes. Por outro lado, Lula também nomeou Dias Toffoli, e não é surpresa que ele seja uma das figuras mais políticas e promíscuas da Corte. Também não é surpresa que Gilmar Mendes, nomeado por Fernando Henrique Cardoso, seja a figura mais promíscua da Corte. E não será surpresa que Cristiano Zanin, nomeado explicitamente por ser advogado de Lula, participe disso. O segundo aspecto é que, independentemente da melhor conduta presidencial imaginável, é claro que um ministro pode se deixar seduzir. Os ministros são assediados de todas as pontas, pelo poder econômico, pela comunidade jurídica e advocatícia, por patrocinadores de eventos. Acho importante discutir o modo de nomeação, mas esse não é o grande remédio contra a promiscuidade. Isso é algo muito mais profundo da comunidade jurídica.
Lula indicou o próprio advogado e, depois, um ministro de seu governo, algo que Jair Bolsonaro e Michel Temer também haviam feito. Essas relações tão próximas com os governos não comprometem diretamente algo que o senhor cita no livro, que é a necessidade não só de independência, mas de parecer independente?
Acho que afeta, mas em graus variados. O fato de um jurista que vira ministro ter, algum dia na vida profissional, advogado em causas que têm intimidade com os interesses e as relações do presidente cria um início de ruído. Na outra ponta do espectro, está um advogado que tirou o presidente da cadeia. Então, sempre poderá haver algum tipo de questionamento. Mas, para isso, há mecanismos de suspeição e de conflito de interesses. É muito simples mitigar ou neutralizar isso. Basta que o ministro não participe do julgamento, respeitando princípios republicanos muito básicos. É patológico que o Supremo ignore hoje os imensos conflitos de interesse em razão de atividades passadas, mas também de atividades presentes, o que é o mais grave. O fato de ministros aceitarem participar de eventos promíscuos é muito gritante, e isso ocorre todo dia no STF.
A discussão sobre mandatos de ministros é válida ou meramente política?
É uma discussão importantíssima, apesar de ministros, de maneira defensiva, atacarem esse tipo de proposta porque se sentem atingidos, e mesmo que, às vezes, essas propostas venham no calor do debate público e partam das forças políticas mais obscuras e extremistas. Na substância e no mérito, mandato para ministro de Suprema Corte é a coisa mais elementar nas democracias do mundo. Em qualquer Corte europeia, os ministros têm mandato. Ficam oito, 12 anos... Isso não só cria uma rotatividade como impede que ministros fiquem 35 anos na Corte, impede que um presidente, por questões puramente aleatórias, possa nomear sete ministros e outro possa nomear dois, impede várias disfunções. A única Corte que não adota isso é uma das Cortes mais patológicas do mundo, apesar de muito admirada, que é a dos Estados Unidos.
O senhor foi crítico das atuação de Sergio Moro à frente da Lava-Jato, inclusive do embarque no governo Jair Bolsonaro em 2019. Ricardo Lewandowski, que tem um histórico de decisões favoráveis ao PT, estaria cometendo o mesmo erro?
Acho importante não perder de vista as diferenças. Sergio Moro embarcou em uma cruzada messiânica que, com práticas absolutamente ilegais, levou à prisão de Lula e à exclusão dele da eleição. Ele participou do jogo eleitoral, ajudou a eleger Bolsonaro e consta que, mesmo antes do segundo turno, já estava em conversas para ingressar no governo. Então, é muito grande o que Moro fez para dizer que Lewandowski está fazendo a mesma coisa. A magnitude é incomparável. Lewandowski está no topo da carreira e tem uma relação de 30 anos com Lula. Porém, não é possível também ignorar certas semelhanças de fundo. Se Moro investiu na cruzada messiânica lavajatista, Lewandowski foi no STF um dos grandes representantes de uma cruzada para eliminar tudo o que caiu na rubrica da Lava-Jato. Então, não é que Lewandowski tomou decisões que interessaram ao governo Lula e, ao se aposentar, virou ministro. É algo mais específico desse contexto de guerra sectária entre lavajatismo e antilavajatismo. O que no começo era um bom debate jurídico sobre as ilegalidades da Lava-Jato se transformou num debate de facções.
É muito claro que as grandes forças incitadoras (dos atos de 8 de janeiro de 2023) não estão sendo incomodadas. Isso envolve quem financiou e as lideranças políticas e militares que induziram e participaram. Não punir essas pessoas não é pacificação, é capitulação. Está sendo punido quem não tem poder.
O senhor usa o termo “vedetismo judicial” para se referir a ministros que têm presença ostensiva na mídia, muitas vezes comentando casos que estão sob julgamento. Muitos atribuem esse fenômeno ao televisionamento das sessões, o que não é uma realidade em todos os países. O senhor concorda?
É possível dizer, sim, que o surgimento do televisionamento, em particular das sessões plenárias do STF, magnificou a exposição pública dos ministros e deu palco ao populismo judicial. Isso é meio incontroverso. O marco inaugural e ainda hoje imbatível dessa espetacularização é o mensalão. Foi uma série de julgamentos diários, em que se debatia nas padarias, nos bares e nos táxis o voto de cada ministro. Óbvio que isso influenciou o comportamento de vários ministros, que não estavam debatendo entre eles, estavam olhando para a câmera. Mas isso não significa que seja um problema televisionar outros momentos do julgamento, como os debates, as sustentações orais de advogados, as audiências públicas. Não é uma discussão do tipo “tudo ou nada”. É uma discussão sobre se, naquele momento central da decisão do colegiado, a televisão cria vícios, como votos imensamente prolixos, se mais atrapalha do que ajuda. A televisão é um incentivador do vedetismo, sem dúvida, mas não só isso, também há o hábito de ministros se deixarem seduzir por microfones de jornalistas, e também o hábito de jornalistas se deixarem seduzir pelo boquirrotismo dos ministros.
O Judiciário vem dando uma resposta firme aos atos de 8 de janeiro de 2023, mas também há quem aponte excessos, como em relação ao inquérito das fake news, que acabou por concentrar muitas decisões nas mãos de um juiz. Qual é o limite da resposta institucional adequada a um fato tão grave?
Primeiro, é verdade que o Supremo adotou, a partir de um certo momento do governo Bolsonaro, certas ferramentas excepcionais, traduzidas em inquéritos. Esses inquéritos se transformaram em espécies de delegacias de polícia dentro do Supremo, sem prazo para acabar e sem fato muito determinado. Esse excepcionalismo é justificável diante da inércia, inação e irresponsabilidade do procurador-geral da República? É possível dizer que sim. Esse excepcionalismo, se olharmos com lupa os seus atos concretos e individuais de investigação, cometeu abusos aqui e ali, apesar de certas decisões justificadas? Não temos essa resposta, mas é possível intuir que sim, e isso se torna mais grave na medida em que é um abuso monocrático. Mas o mais importante é que essas ferramentas não podem se normalizar, porque são excepcionalíssimas. Do ponto de vista procedimental, é possível problematizar isso sem deixar de reconhecer o papel que essas ferramentas tiveram na preservação da integridade eleitoral em 2022, mas sem deixar de observar também se esse instrumento não está perdendo a mão no retorno a práticas democráticas. Tão ou mais importante é saber concretamente o que o STF está fazendo, apesar de muita declaração de auto-heroísmo, sobre os resultados das investigações. Nesse marco de um ano, o STF mandou prender quase 3 mil pessoas e está condenando de forma rigorosa, ou até exagerada, os executores minúsculos das invasões dos prédios públicos. Não significa que eles não tenham cometido crimes e não mereçam punição, mas punir a manicure, a faxineira e o pedreiro a 17 anos de prisão porque estavam ali e tacaram uma pedra no vidro, tem alguma coisa desequilibrada aí. É muito claro que as grandes forças incitadoras não estão sendo incomodadas. Isso envolve quem financiou e as lideranças políticas e militares que induziram e participaram. Não punir essas pessoas não é pacificação, é capitulação. Está sendo punido quem não tem poder, e isso é gigantesco, é muito Brasil.