Primeira mulher a assumir a chefia da Procuradoria-Geral da República (PGR), Raquel Dodge completa três meses no cargo com pelo menos seis embates com o Palácio do Planalto, mas ainda sob desconfiança na força-tarefa da Operação Lava-Jato. A procuradora tomou posse em setembro, após disputa que dividiu o Ministério Público Federal.
Raquel ficou em segundo lugar na eleição interna da categoria, mas mesmo assim foi indicada ao posto pelo presidente Michel Temer. Ela teve o apoio do ex-presidente José Sarney e contou com o beneplácito do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, ambos conselheiros de Temer.
Tão logo assumiu a PGR, Raquel encaminhou ao STF manifestação favorável ao envio à Câmara da denúncia contra Temer por obstrução da Justiça e organização criminosa. A acusação acabaria barrada no plenário, mas ajudou a procuradora a passar imagem de independência após os rumores iniciais de que poderia atuar em sintonia com o Planalto.
– Raquel tem história limpa. Escolheu, para sua equipe, pessoas experientes e duras na avaliação dos processos criminais. As ações da PGR foram realizadas com firmeza – menciona o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, José Robalinho Cavalcanti.
Um mês depois, novo conflito com o governo: Raquel classificou de “claro retrocesso” uma portaria do Ministério do Trabalho que alterava regras no combate ao trabalho escravo.
Com trajetória de defesa dos direitos humanos, ela pediu ao ministério a revogação da portaria, que acabou suspensa pelo STF. Uma nova versão foi lançada no final do ano.
A procuradora ainda recorreria ao Supremo para anular o decreto de indulto de Natal de Temer. O texto reduzia o tempo de cumprimento das penas a condenados pela Justiça e chegou a ser chamado de “insulto de Natal” pelo coordenador da Lava-Jato no Paraná, Deltan Dallagnol. Ela também ajuizou ação contra a decisão do Planalto de injetar R$ 99 milhões em propaganda a favor da reforma da Previdência.
Pedidos de prisão e freio nas delações
Apesar dos choques com o governo, Raquel segue sendo vista com ceticismo pelo núcleo paranaense da Operação Lava-Jato e por remanescentes da PGR vinculados ao antecessor, Rodrigo Janot. Entre as ações de Raquel que geraram questionamentos está um ofício, enviado ao STF, no qual declarou que o ex-ministro Geddel Vieira Lima (PMDB-BA), um dos escudeiros de Temer, “parece” ter assumido a posição de um “líder de organização criminosa”.
A afirmação repercutiu porque, antes da magistrada, Janot havia classificado o próprio Temer com essa alcunha. “Engraçado. Nunca soube que Geddel era o chefe. Para mim, o chefe dele era outro”, ironizou à época, no Twitter, o senador Renan Calheiros (PMDB-AL).
Para os saudosistas do estilo de Janot, Raquel reduziu demais o ritmo das apurações sobre corrupção. Em conversas reservadas, os procuradores reclamam que ela paralisou investigações para focar em vazamentos de informações.
A medida teria beneficiado os suspeitos sem produzir efeitos práticos, uma vez que dados sigilosos continuam chegando à imprensa.
– Delações polêmicas não andam. O grupo de trabalho da Lava-Jato está supermoroso. Ela é centralizadora e as informações não circulam. Mesmo assim, não evitou vazamentos. A revista Veja deu parte do que a defesa de Antonio Palocci estaria negociando com eles – comenta uma fonte com acesso aos corredores da PGR.
Segundo balanço dos três primeiros meses de gestão divulgado no último dia 18, a PGR fez no período 76 manifestações em 50 inquéritos relacionados à Lava-Jato. O levantamento também aponta que Raquel realizou pelo menos 20 pedidos de prisão, buscas, apreensões e quebras de sigilo dentro da operação.
As estatísticas não animam os adversários internos. Os amigos de Raquel, porém, elogiam a conduta da procuradora. Subprocurador-geral da República, Domingos Sávio da Silveira diz que a colega pauta o trabalho à frente do MPF por três aspectos:
– Há firmeza nos princípios, respeito aos acusados e capacidade de construir consensos internos com trabalho em equipe.
Histórico no cargo:
Junho
28/06 - Michel Temer descarta a tradição de nomear o candidato mais votado em eleição interna do Ministério Público Federal (MPF) e indica Raquel Dodge como a nova procuradora-geral da República.
Agosto
08/08 - Em encontro fora da agenda, Temer recebe, no Palácio do Jaburu, a nova chefe do MPF. O episódio desperta críticas contra a dupla.
Setembro
18/09 - Raquel é a primeira mulher no país a assumir o cargo de procuradora-geral. Na posse, defende a harmonia entre os poderes e sublinha a importância do MPF no combate à corrupção.
20/09 - A procuradora encaminha manifestação ao STF em que se posiciona a favor do envio à Câmara da segunda denúncia contra Temer, por obstrução da Justiça e organização criminosa. A investigação havia sido encaminhada ao Supremo pelo ex-procurador-geral Rodrigo Janot.
26/09 - Na primeira entrevista após assumir, Raquel promete que os trabalhos da Lava-Jato terão “prosseguimento natural” e “todo o apoio” em sua gestão. Também diz que a rescisão de delações, como as de executivos da JBS, não deve invalidar provas coletadas por meio dos acordos. O posicionamento segue a linha de Janot.
Outubro
02/10 - A procuradora-geral envia parecer ao STF no qual defende a possibilidade de que hajam candidaturas sem filiação partidária.
09/10 - Raquel dá parecer favorável para que os executivos da JBS Joesley Batista e Ricardo Saud permaneçam presos. A procuradora-geral afirma que Joesley tem “impulso voltado a praticar crimes”.
16/10 - A Polícia Federal (PF) deflagra operação, a pedido da PGR, de busca e apreensão no gabinete do deputado federal Lúcio Vieira Lima (PMDB-BA) e outros endereços ligados a ele. O parlamentar é irmão de Geddel Vieira Lima, escudeiro de Temer.
18/10 - Raquel pede ao Ministério do Trabalho a revogação de portaria que buscava modificar regras de combate ao trabalho escravo.
19/10 - Em ofício ao STF, a procuradora-geral mostra-se favorável à manutenção da prisão preventiva de Geddel. No documento, afirma que o ex-ministro “parece” ter assumido posição de “líder de organização criminosa”.
27/10 - Ao contrariar pedido da defesa de Temer, Raquel defende o prosseguimento das investigações sobre o presidente no STF relacionadas à edição de um decreto que trata do setor portuário.
Novembro
16/11 - A procuradora-geral envia ao STF parecer favorável à decisão da Corte que validou a prisão de condenados em segunda instância da Justiça.
Dezembro
12/12 - Raquel afirma que pediu à PF a investigação sobre vazamentos de cinco acordos de delação premiada em negociação ou já fechados pela PGR. Em entrevista, relata que determinou a interrupção de uma das tratativas por causa das divulgações.
15/12 - Encaminha ao STF parecer no qual sustenta que é inconstitucional a medida provisória que deu status de ministro a Moreira Franco, aliado de Temer envolvido em suspeitas.
20/12 - Raquel questiona no STF a previsão de R$ 99 milhões para a comunicação institucional da Presidência. Segundo ela, é inconstitucional.
27/12 - A procuradora-geral ingressa no STF com ação direta de inconstitucionalidade contra o indulto de Natal concedido pelo presidente Temer.