A acomodação de cargos políticos para agradar vereadores e cabos eleitorais dos 19 partidos aliados tem provocado um descontrole envolvendo cargos em comissão (CCs) no governo Alceu Barbosa Velho (PDT), em Caxias do Sul. Ao verificar-se a listagem no site da prefeitura e fazendo-se uma checagem onde estão lotados, percebe-se que é natural uma pessoa não exercer o cargo para o qual foi contratada. Não é só isso: pode ser verificado o uso do horário de expediente no serviço público para o exercício de atividades particulares.
Não é possível precisar quantos estão deslocados das secretarias, mas há, por exemplo, um grande fluxo aos pavilhões da Festa da Uva. É certo que a produção do megaevento requer o remanejo de servidores, mas, se os CCs podem permanecer longe de suas secretarias de origem durante meses, a lógica seria que, encerrada a festa, em março, esses CCs fossem dispensados. No dia 24 de outubro, o Pioneiro iniciou o acompanhamento de vários CCs nas repartições nas quais deveriam atuar, conforme o portal da transparência. Verificou a situação de 15. A maioria das respostas é de que a pessoa atua em outra pasta. Além disso, mesmo que o Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Municipais determine que "o exercício de cargo em comissão exigirá de seu ocupante inteira dedicação ao serviço, podendo ser convocado sempre que houver interesse da administração", há quem atue em atividades particulares.
>> ÁUDIO: ouça a gravação que mostra que Ênio Martins e Pâmela da Rosa, ambos lotados na Secretaria de Meio Ambiente, atuam na Festa da Uva
>> ÁUDIO: Servidor lotado na Secretaria de Governo atua na de Agricultura
O ex-vereador Alaor Michels de Oliveira (PMDB) dedica as manhãs ao seu programa de rádio, mesmo sendo assessor de relações institucionais no Serviço Municipal de Água e Esgoto (Samae), com salário mensal de R$ 8.986,83, um CC8. O coordenador odontológico do Instituto de Previdência e Assistência Municipal (Ipam), Sérgio Callegari (PP), além do CC6 que ocupa (R$ 4.784,31), atende em seu consultório particular e no Sindicato dos Odontólogos, do qual é presidente. A professora aposentada Maria Clélia Borges de Abreu, lotada na Secretaria de Educação, mas atualmente atuando no Orçamento Comunitário (OC), até aceitou ver a sorte nas cartas para a repórter em dias e horários de expediente na prefeitura. Ela custa aos cofres públicos R$ 8.986,83/mês (CC8).
Horário não é respeitado
Na atual administração, há reclamações vindas justamente de alguns CCs, por entenderem que a prática os torna ainda mais desacreditados. A carga horária é das 8h às 18h, com uma hora de intervalo para o almoço, determinação baixada por Alceu em janeiro. Além disso, é exigida disponibilidade para o assessorado, de acordo com o estatuto do servidor municipal. Está embutida no salário a verba de representação de 50%. Consulta efetuada junto a órgãos técnicos confirma que deve ser seguida a determinação do Regime Jurídico Único dos Servidores.
É total o descontrole de frequência dos CCs. Os secretários, por sua vez, evitariam polemizar. No início do governo de Alceu Barbosa Velho, foi instituído o livro ponto com os horários de entrada e saída. Porém, a medida teria durado cerca de três meses e foi extinta. A Procuradoria Geral do município teria alertado para a possibilidade de os CCs ingressarem na Justiça quando fossem destituídos, reivindicando o pagamento de horas extras. A partir daí foi implantada a folha-ponto, um sistema frágil que consiste em simplesmente aceitar a declaração dos cargos políticos quanto à presença ao trabalho.
Do OC para a leitura de cartas
De 12 tentativas de contato feitas pelo Pioneiro por telefone junto ao OC, em nenhuma foi possível localizar Maria Clélia Borges de Abreu. Um servidor informou que ela atende a região de Ana Rech. Próximo das 16h do dia 4 de novembro, uma segunda-feira, Maria Clélia atendeu, em frente à sua residência, a repórter do Pioneiro, que se identificou como Ana Lúcia. Sem saber que se tratava de uma jornalista, ela concordou em "ver a sorte nas cartas", ao preço de R$ 25.
>> ÁUDIO: ouça trechos da ligação telefônica em que a repórter combina encontro com Maria Clélia
A consulta ficou marcada para o dia 6, quarta-feira, às 14h30min. Na data e horário previstos, Maria Clélia não apareceu, mas cerca de meia hora depois foi vista chegando em casa. Por volta de 16h, em contato telefônico mantido com o OC, a informação foi de que ela chegaria mais tarde porque às 19h30min iria a uma reunião. Mas, cerca de 15 minutos depois, em nova ligação, informaram que Maria Clélia não estava na lista de quem participaria das reuniões do OC naquela noite.
No dia 20 de novembro, às 13h58min, procurada no OC por telefone, a informação foi de que ela chegaria mais tarde. Também foi dito que as reuniões do OC de 2013 se encerraram em fim de outubro. Na mesma data, às 16h, disseram que ela havia chegado, mas não estava na sala. Já às 16h27min, a informação foi de que ela ainda não havia chegado. Em 27 de novembro, uma quarta-feira, às 11h, ela marcou nova consulta por telefone para o trabalho de cartomancia com a cliente/repórter, que desta vez se identificou como Rejane. Ficou para as 15h do dia seguinte, agora a R$ 30. No dia 28, a repórter voltou a ligar, desmarcando a consulta.
Maria Clélia era presidente do PSL, partido da coligação Caxias para Todos do prefeito Alceu. Foi destituída da presidência em setembro, supostamente por baixa produtividade.
Consulta na hora da jornada no serviço público
O coordenador odontológico do Ipam, Sérgio Callegari (CC6, R$ 4.784,31) utiliza o horário de expediente para atender em seu consultório particular. Embora ele possa ser encontrado no instituto (atendeu algumas ligações feitas pelo Pioneiro), por duas ocasiões Callegari aceitou marcar consultas com repórteres em horário de expediente do Ipam. No dia 4 de novembro, uma segunda-feira, por volta de 16h30min, ele marcou consulta com a repórter, que se identificou como Sandra, para as 9h30min do dia seguinte. Callegari foi pontual. Ele foi fotografado pelo Pioneiro entrando na galeria, no Centro, onde tem consultório. A repórter/paciente não se apresentou para a consulta, menos de meia hora depois ele deixou o local.
>> ÁUDIO: clique para ouvir o momento em que a repórter consegue marcar uma consulta com Sérgio Callegari no horário de expediente dele no Ipam
No dia 21 de novembro, uma quinta-feira, às 10h30min, também por telefone, Callegari marcou consulta com outro repórter do Pioneiro, que se identificou como Marcelo. Callegari disse que estaria à tarde no consultório por volta de 16h. Diante da argumentação do repórter de que talvez não conseguisse desmarcar um compromisso naquela tarde, o dentista informou que atende em outros dias, citando segunda de manhã e quinta e sexta de tarde.
Callegari era vice-presidente da Executiva municipal do PP até maio. O PP integra a coligação Caxias para Todos.
Meio expediente a quase R$ 9 mil
O ex-vereador pelo PMDB Alaor Michels de Oliveira ocupa a função de assessor de relações institucionais no Samae apenas por meio expediente, embora receba integralmente os R$ 8.986,83 mensais, conforme consta no portal da transparência. Pela manhã, apresenta o programa Show da Alegria, na rádio 1010. Alaor está no rádio de segunda a sábado, ao vivo, das 9h às 12h. Apesar do curto espaço de tempo para a atividade no serviço público, a função de Alaor tem várias atribuições, pelo menos em lei. Cabe a ele coordenar a assessoria do gabinete do diretor-presidente com a comunidade. Promover a integração com outras secretarias e órgãos governamentais. O PMDB detém o posto de vice-prefeito no governo municipal.
>> ÁUDIO: ouça trechos da ligação telefônica que confirma que Alaor de Oliveira frequenta o Samae somente no período da tarde
Contrapontos
O Pioneiro procurou, neste domingo, os três CCs e o prefeito Alceu Barbosa Velho para que se manifestassem sobre a situação. Apesar das tentativas de contato por telefone, não foi possível falar com Alaor de Oliveira. Confira as declarações:
Maria Clélia Borges de Abreu afirma que, como eventualmente trabalha aos sábados e domingos, pode folgar, e acrescenta: "Também somos filhos de Deus". Ela acusou o Pioneiro de criticá-la sistematicamente (o Pioneiro noticiou neste ano a sua destituição do PSL, por decisão da presidência estadual do partido). Maria Clélia garantiu que não é cartomante.
Sérgio Callegari garante que médicos e dentistas têm tratamento diferenciado dos demais CCs. No caso dele, afirma ter combinado com a direção do Ipam, quando entrou na administração, um contrato de 20 horas semanais. Ele não soube afirmar qual a base legal desse tratamento diferenciado em relação a outros CCs. Callegari também afirmou estar sempre à disposição quando solicitado fora dessa jornada. Considerando esse acordo, não vê qualquer irregularidade.
O prefeito Alceu Barbosa Velho (PDT) ponderou que o ex-vereador Alaor Michels de Oliveira trabalha aos sábados e domingos e à noite e que, por isso, tem horário flexível, que lhe assegura o direito de trabalhar em uma rádio pela manhã. Barbosa Velho também assegurou que todos os CCs estão trabalhando, conforme relatórios que recebe das chefias.
- Não tem ninguém que só bate cartão - garante.
Sobre a atividade no horário de expediente de cartomancia, classificou como "lamentável, isso não é correto". Do dentista Sérgio Callegari, afirmou desconhecer que ele tenha consultório particular. Por fim, afirmou que quando lhe foi apresentado o nome de Callegari, foi acordado que o cargo previa dedicação integral.
Fantasmas
CCs de Caxias do Sul descumprem horários e exercem outras atividades no período de expediente
Lei determina inteira dedicação ao serviço, mas detentores de cargos políticos podem ser vistos em trabalhos particulares. Há também vários casos em desvios de função
GZH faz parte do The Trust Project