O anunciado decreto do prefeito de Farroupilha para regular um chamado "isolamento humanitário" contraria a norma estadual que determina que o comércio fique fechado em todo o Rio Grande do Sul até o dia 15 de abril. No entendimento de juristas, este impasse entre entes federativos é uma consequência da Lei da Quarentena, que foi aprovada às pressas em fevereiro para o enfrentamento da situação desta emergência de saúde pública. Como existem interpretações da legislação, não é possível ser taxativo sobre o que é certo ou errado. Mas, caso a questão seja judicializada, a tendência é que prevaleça a norma mais restritiva.
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Segundo a Constituição, no artigo 23, inciso 2º, cuidar da saúde e assistência pública é competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Na Lei 13.979, aprovada em fevereiro para ser o marco legal diante da iminente pandemia, o artigo 3º prevê que para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências medidas de isolamento, quarentena e realização compulsória de exames médicos e testes laboratoriais.
— É responsabilidade de todos proteger e preservar a saúde, e a Lei da Quarentena, que é a grande referência para todos, não repartiu de forma clara o que caberia ao município e ao Estado. Pode haver este conflito e de fato está havendo. É um tema complexo, porque estamos numa conjuntura atípica — aponta Wilson Antônio Steinmetz, professor da Universidade de Caxias do Sul (UCS) e doutor em Direito Constitucional.
No entendimento da mestre em Direito Público e professora da UCS, Maria do Carmo Quissini, o debate acontece porque houve demora na articulação da atuação dos entes federativos. Por outro lado, impasses eram previsíveis porque as realidades de cada comunidade são diferentes e os prefeitos tem de dar conta das suas peculiaridades.
— A lógica era a União liderar a coordenação política em nível nacional; isto aconteceu, mas já com o problema instalado e nesse intervalo os municípios, diante da preocupação em não colocar em risco a população, foram tomando suas decisões, editando seus regulamentos. O alinhamento entre os entes federativos, no campo político, foi tardio — aponta.
Sobre a competência ser concorrente, a professora acredita que cabe à União a edição de normas gerais e aos estados e municípios apenas editarem legislação suplementar, detalhando situações peculiares e particulares. O entendimento é que estes decretos não podem contrariar ou conflitar com a norma geral.
— Os estados também impõem regras aos municípios dentro de seu território e, assim, sua legislação prevalece. O município pode editar sua própria legislação, mas não pode contrariar as normas editadas, especialmente no sentido de abrandar exigências — avalia.
Caso prefeitos gaúchos insistam em liberar atividades não essenciais, a tendência é que seja judicializada. O professor Steinmetz prevê que o Judiciário deverá decidir em favor da norma mais restritiva.
— Em um conflito entre decretos, entendo que deva prevalecer o decreto do governador. A pandemia não é um problema municipal. É um problema que transcende as fronteiras do município. Em Farroupilha, só trabalham pessoas da cidade? Ou também quem mora em Caxias do Sul? Uma medida tomada pelo prefeito de Farroupilha pode afetar Caxias do Sul, Garibaldi, Bento Gonçalves, etc. Estas medidas podem inferir na saúde pública de outros municípios. Devemos dar prevalência à norma estadual — opina Steinmetz.
O entendimento é semelhante ao do procurador-geral do Estado, Eduardo Cunha da Costa, que, durante a coletiva de imprensa sobre a norma estadual na quarta-feira (1º), afirmou que municípios que tomarem atitudes contrárias poderiam responder por crime sanitário. O professor da UCS concorda que, ao editar este decreto municipal como foi anunciado à imprensa, o prefeito Claiton Gonçalves está assumindo um risco.
— O Código Penal prevê crimes contra a saúde pública, como causar epidemia e infringir determinação do poder público contra doença contagiosa. Em princípio, sim, pode haver uma responsabilização penal por crimes contra saúde pública. O que não significa necessariamente que será denunciado e condenado. É um risco que o prefeito pode estar assumindo, de ser denunciado criminalmente, além de responsabilização administrativa que também pode acontecer — aponta Steinmetz.
Debate também reflete em lojistas
Se o decreto for publicado como foi anunciado, na terça-feira(7), os lojistas de Farroupilha estarão diante de uma norma estadual que proíbe a abertura e um decisão municipal que permite a atuação com regras de higienização e evitando aglomerações. Até que a Justiça tome uma decisão sobre o impasse, o professor Steinmetz afirma que o empresário não poderá ser responsabilizado. Para explicar, o especialista em Direito Constitucional utiliza o exemplo da presunção de inocência.
— A meu juízo, o lojista está amparado. É um conceito técnico do Direito, que é a presunção de validade das normas. É semelhante ao conceito de que ninguém é considerado culpado até que se prove o contrário. Um decreto presume-se válido enquanto o Judiciário não disser que ele é inválido. Se sou lojista, tenho uma norma que me credite a abertura da loja. Não posso ser responsabilizado, pois sou munícipe. Só que, se e no momento que houver uma liminar que suspenda a norma municipal, o lojista já estará sujeito novamente a norma estadual — explica.
A mestre em Direito Público tem uma opinião diferente:
— No momento da edição da regulamentação estadual, esta é que deve ser observada. Para o comércio, na verdade, não existirá dois decretos. Em vigência, em relação ao aspecto da abertura dos estabelecimentos, só está o estadual. É importante ponderar, por fim, que o diálogo é sempre a melhor alternativa para compor e equilibrar os vários interesses que precisam ser atendidos diante de situações como esta, tendo sempre presente que o interesse coletivo deve prevalecer sempre em relação ao interesse privado — afirma a professora Maria do Carmo.
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