
Cultura, gastronomia, desenvolvimento e um jeito típico de se comunicar. A imigração italiana no Rio Grande do Sul criou, entre diversos legados, o linguístico. Há uma forma particular de falar que não deixa o descendente esconder de onde vem, mesmo 150 anos depois da chegada dos pioneiros à Serra.
Foi o bilinguismo, a capacidade se comunicar tanto em português quanto em talian, que deu origem, de acordo com o presidente da Associação de Difusores do Talian, Juvenal Dal Castel, ao sotaque que identifica alguns descendentes de italianos. Pode ser reconhecido pela troca do som do jota pelo zê, do “ão” pelo “on” ou da pronúncia diferente dos erres.
— O bilíngue transfere marcas da sua língua materna para a segunda. Para mim, o sotaque é aquilo que você pode ter de mais sagrado, porque é resultado de um contato linguístico — explica.
Pensando no registro desse patrimônio imaterial, o compositor, professor e escritor Ivo Gasparin escreveu dois romances para explicar expressões típicas do imigrante italiano e que, com o passar do tempo, foram traduzidas por eles para um português "carregado de história". Publicou as obras, segundo ele, para documentar uma língua que tem futuro incerto:
— Nosso jeito de falar pode mudar nos próximos 50 anos, se o idioma não for transmitido. O sotaque se criou porque pensamos em talian e falamos em português.
O talian surgiu como um dialeto nascido no Brasil para facilitar a comunicação com os nativos e, desde 2014, foi reconhecido como idioma pelo Ministério da Cultura e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como referência cultural brasileira. Hoje é reconhecido como idioma cooficial de 30 municípios gaúchos, entre eles Serafina Corrêa, Vila Flores e Farroupilha.
Talian deu origem ao sotaque

Transmitido entre gerações e preservado nos primeiros anos de imigração por conta do distanciamento dos centros urbanos, o talian surgiu da unificação de diferentes dialetos. Organizador da primeira gramática do idioma, João Tonus lembra que italianos chegaram à Serra vindos de todas as partes do Vêneto, região ao norte do país europeu, e cada um deles tinha uma forma de falar:
— A língua nasceu em 1924, quando o frei Aquiles Bernardi publicou na Stafetta Riograndense a história de Nanetto Pipetta. É a literatura básica, quando começou a ser preservada na forma escrita. O jornal da época misturava dialetos que já estavam por aqui com o italiano padrão e, na coluna do frei Bernadi, o talian nasceu com expressões de todas as sete províncias do Vêneto.

No entanto, a história do talian tem um capítulo de silêncio. No período do governo de Getúlio Vargas e, principalmente, durante a Segunda Guerra Mundial, falar italiano em público foi proibido, algo que, segundo linguistas, contribuiu para que o sotaque surgisse.
— O italiano passou a ter que falar português, mas seguiu pensando em talian. Foi quando começou a trocar as pronúncias e passou a ser debochado. Isso é um crime, é um deboche contra quem fala duas línguas. Por isso, o sotaque só vai sobreviver se o idioma permanecer. No momento que o talian deixou de ser transmitido na família, foi o sotaque que passou a ser transmitido e, assim, as pessoas passam a não entender de onde vem as trocas de pronúncias, qual é a origem desse jeito de falar — destaca o presidente da Associação de Difusores do Talian.
Da vergonha ao orgulho
Para a doutora em linguística e professora de talian Loremi Loregian-Penkal quem de fato é bilíngue e domina a língua materna dos antepassados não se dá conta que carrega consigo o sotaque:
— O meio urbano é quem mais percebe e quanto mais urbano o meio maiores são as influências. O ouvido escuta novas pronúncias e a pessoa se adapta para não ser excluída ao meio. Quanto mais distante de grandes cidades, menores são as chances de chegarem as influências externas.
Por esse motivo, segundo ela, comunidades mais afastadas preservam e se orgulham das próprias características linguísticas. Em Serafina Corrêa e Monte Belo do Sul, por exemplo, placas informam que “qua se parla talian” (aqui se fala talian).

Foi a partir do centenário da imigração italiana, em 1975, que o cenário mudou. De acordo com Tonus, o final da década de 1970 e início da década de 1980 marcou o surgimento de corais e publicações que passaram a preservar a cultura do imigrante. Inclusive o do Grupo Miseri Coloni, criado por um grupo de jovens em 1982, incluindo Tonus e que se apresentam até hoje.
— Foi ali que a coisa começou a respirar, antes era bullying e tiração de sarro. Ainda tem quem prefira estudar inglês, mas a língua da gente é aquela que sentimos. A verdadeira língua madre é aquela que se usa para bestemar (xingar, reclamar)— brinca.
O que também contribuiu para a construção do pertencimento e abandono da vergonha de falar dessa forma, segundo ele, foram os programas de rádio. Entre 1980 e 1990 mais de cem surgiram de forma simultânea em cidades do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina.
Apresentador de um deles, em Flores da Cunha, Ivo Gasparin ciàcolou (conversou) por sete anos no programa Via de Vanti:
— Sempre disse que o italiano sofreu dois tipos de bullying. O primeiro, quando ia para a cidade, falava talian, tinha sotaque e o chamavam de colono. Aí voltava para casa falando português e diziam que era exibido. Mas, quando as rádios começaram a ter programas falados em talian, o público percebeu que quem falava talian falava outra língua. Aí surgiu o orgulho.