Chuva. A palavra sinônimo de alívio para a agricultura mostrou nos últimos meses que pode causar estragos muitas vezes irreparáveis, inclusive em uma região marcada pela resiliência daqueles que lidam com a terra. O volume recorde de precipitação registrado em quase toda a Serra entre abril e junho gera dúvidas sobre o futuro em algumas propriedades. Mas em muitas outras prevalece a certeza de que, apesar de tudo, é preciso continuar.
Na segunda reportagem da série Quatro estações da videira, a evolução da planta até a colheita, mote do projeto, perde parte do protagonismo. Afinal, não há como falar do cultivo sem abordar como estão as propriedades depois dos deslizamentos de terra causados pela chuva histórica. Conforme levantamento feito pelo União Brasileira de Vitivinicultura (Uvibra), a catástrofe climática que atingiu o Rio Grande do Sul provocou uma perda de 500 hectares de vinhedos no Estado, o que representa 1% dos 45 mil hectares de toda área plantada com a cultura. Contudo, grande parte dos prejuízos foram justamente na Serra. Em uma etapa do plantio em que os parreirais se preparam para o inverno, com a videira em dormência, os principais processos são o desponte (corte da parte velha da videira que pode ser descartada) e amarração dos ramos. Mas não é o que todos os viticultores estão fazendo, em função das perdas de estruturas. O extensionista rural da Emater-RS, Neiton Bittencourt Perufo, elenca as diferentes realidades observadas entre os viticultores.
– Tem o produtor que perdeu praticamente nada, o que perdeu parte da estrutura de pomar, que vai ter de reestruturar, e tem aquele que, infelizmente, perdeu tudo, os casos mais preocupantes. Porque, além de não ter mais a sua fonte de renda, o ano está praticamente perdido. Não tem condições de colocar maquinário, estruturar postes. Vai demandar planejamento, organização da propriedade, reestruturação dessas áreas que foram afetadas e também áreas que nem dessa forma será possível – avalia Perufo.
Professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS) de Bento Gonçalves, o engenheiro agrônomo Leonardo Cury revela que o grande vilão para o produtor de uva tornou-se o solo, extremamente prejudicado pela catástrofe.
– A maioria dos nossos solos tem grande concentração de argila. E ela foi a responsável. A água infiltrou no morro, chegou na argila e foi levando para baixo. Essas são as situações de vinhedos que perderam tudo. O que desbarrancou foi matéria orgânica. Uma segunda situação verificada é onde caiu parte do morro, a parte superficial. Nesses lugares, vamos trabalhar com enxerto de solo para tentar aumentar essa matéria orgânica e não deixar só a parte com muita argila, sem nutrição. Na maior parte dos parreirais, apesar do volume muito grande de água, e vários dias com encharcamento de solo, logo depois que cessou a chuva, a água conseguiu infiltrar e, novamente, deixar a planta viva – destaca Cury.
A médio e longo prazos, o engenheiro agrônomo aponta que será papel do tempo revitalizar o solo e retomar o quadro que era visto antes de maio de 2024.
– Eu calculo no mínimo de seis a sete anos para começar a ter um ganho de matéria orgânica considerável. Voltar à normalidade vai um pouco mais de tempo. E voltar à normalidade, em uma situação que ficou na rocha, estamos falando de milhares de anos para que o solo se recomponha. Precisamos pensar que o que foi perdido são solos de milhares de anos, e que hoje está tudo dentro do rio – destaca.
Onde a sorte também é cultivada
Entre as explicações da família Mariani, que planta uvas no Vale dos Vinhedos, em Bento Gonçalves, para os parreirais terem saído ilesos da chuva está uma boa dose de sorte. Nos 15 hectares, somente o acúmulo d’água e os prejuízos com rompimento de açude foram registrados, preservando intactas as estruturas das videiras. Gustavo Mariani revela os dias de preocupação, com medo de que possíveis deslizamentos prejudicassem a safra. Para ele, quem não foi atingido precisa ajudar os demais, como maneira de manter a força do setor da uva e do vinho.
– É impossível pensar só na nossa propriedade. Nós nos colocamos no lugar do outro, porque o setor da agricultura tem isso no DNA. Às vezes, a gente se escapa, fica aliviado de não ter acontecido, mas ao mesmo tempo é extremamente triste ver os nossos vizinhos perderem tudo assim. A primeira coisa que passa na cabeça é querer ajudar, achar formas de diminuir o sofrimento – aponta.
No trabalho diário depois da chuva, também impactado, o irmão Cristiano Mariani tenta seguir o manejo da videira, para manter os processos do cultivo. Na fase de desponte da parreira que irá durar pelo menos mais um mês, a família aguarda pela poda definitiva, que começa entre julho e agosto.
– O primeiro passo nessa época é tirar o galho velho, que produziu ano passado, e deixar o novo. Depois, começa a amarração, quando pegamos o galho que vai produzir ano que vem, e vai amarrando. Antigamente, era com vime, manualmente. Hoje temos máquinas que facilitam. Mas é um ano diferente. Trabalhamos pensando em quem perdeu. Tem de ter força. Acordar de manhã e pensar em trabalhar, recuperar. Vamos tocar adiante, porque parar não vai resolver – afirma.
Família unida pela videira, perda e certeza de continuar
Parte do vinhedo cultivado há três gerações na Linha Veríssimo de Matos, interior de Bento Gonçalves, de propriedade do casal de agricultores Marcio Mezadri e Daniela Dorigon Mezadri foi derrubada pela chuva. Cerca de três hectares foram destruídos pela estrutura do vizinho Anadair Dorigon, primo de Daniela, que invadiu o terreno junto a uma quantidade incalculável de barro e árvores. Ainda vivendo a incerteza do que virá, ela garante que, juntamente com o marido, irá seguir na viticultura.
– Não tem como explicar. Não existem palavras que possam expressar o que a gente sentiu. Medo, tristeza, insegurança. Agora, estamos vendo o que fazer. A recuperação é lenta e onerosa, por isso nem sabemos como será. Eu fui criada debaixo do parreiral, não sei fazer outra coisa senão cuidar de uma parreira, dos animais. Temos amor por essa vida. Não dá pra desistir. Eu vi muito exemplo de solidariedade nisso tudo. Gente que não nos conhece abrindo a casa, dando um abraço e dizendo estão rezando por ti, torcendo por ti. Isso nos dá força e é isso que vai nos reerguer – desabafa.