Quem convive com criança já deve ter falado ou ao menos ouvido: "são tão espertas, na minha época não era assim". Pode ser “corujice”, mas também parece ser resultado de uma sociedade em que elas têm acesso a horizontes cada vez mais amplos desde bebês, com brinquedos e brincadeiras que até poucas décadas atrás sequer existiam. Ao mesmo tempo em que existem esses movimentos sociais, o que se costuma esperar da educação é que ela mantenha padrões esperados para crianças de outros tempos.
A educação, que não acontece só na escola, mas também é fruto das relações sociais continua, atualmente, a replicar a valorização de habilidades como memorização, repetição e disciplina. Só que as necessidades hoje são outras, tanto para a convivência humana quanto para o mercado de trabalho. O Pioneiro conversou sobre o assunto com Laina Brambatti, graduada e mestre em Filosofia. Ela é também diretora pedagógica da Cataventura Escola Infantil, em Caxias do Sul, que utiliza a metodologia de Maria Montessori (que defendia uma concepção de educação que vai além dos limites do puro e simples acúmulo de informações).
Confira a seguir, os principais trechos da entrevista:
Pioneiro: De uma forma geral, a escola e a educação vem evoluindo de acordo com as exigências de habilidades para o convívio em uma sociedade tão dinâmica como a contemporânea?
Laina Brambatti: De modo geral, a educação, e especialmente a escola tradicional, não mudaram na mesma velocidade que a sociedade mudou. Portanto, não estão produzindo um efeito formativo nas crianças e adolescentes, que gere, que promova ou auxilie no desenvolvimento de um adulto para lidar com as exigências da nossa vivência social.
Quais são as barreiras para esse avanço?
A primeira é a conexão que existe entre educação e política. As diretrizes de um sistema educacional, falando em escola, são formuladas pelo Ministério da Educação e ele sempre vai ter uma formação política. Então, as oscilações que vêm em decorrência das mudanças de governo mexem bastante com as estruturas escolares a nível de legislação, o que, ao invés de promover uma melhora, na maioria das vezes, provoca mais confusão, porque não tem continuidade, tem poucos recursos, a teoria está muito distante dos contextos, das necessidades das famílias, das crianças e dos adolescentes. Então, se sabe muito sobre desenvolvimento humano e sobre o que se deveria fazer para que esse ser humano se desenvolvesse de forma integral, isso está presente na legislação, mas na hora de aplicar, faltam recursos humanos, as estruturas físicas não correspondem à teoria. Por exemplo, se fala em liberdade, se fala em respeito às individualidades, em inclusão, mas o espaço físico não comporta movimento. Ou, por exemplo, a questão de pensar que as teorias e a legislação preveem que todas as crianças tenham as suas necessidades básicas atendidas para compreender o ensino que elas recebem. Isso também não é a realidade na maior parte das vezes. Enfim, essa distância entre a teoria e aplicação da teoria é o primeiro grande problema. Depois, vem a instabilidade decorrente das mudanças que acontecem e não aprofundam. E depois, vem um problema, que é da educação, porque, como ela não é neutra — e nem pode ser, porque ela tem o objetivo de formar —, a gente tem um problema que é decidir o que a gente quer que as pessoas se tornem. Para isso, precisaríamos ter uma sociedade mais dialógica, capaz de chegar a um consenso a respeito disso.
E essa barreira é maior que a financeira, porque quando consideramos que a rede particular e a pública, encontramos semelhanças em termos de metodologias.
A metodologia pedagógica existe. Outra coisa é o funcionamento da escola tradicional. Aí não tem a ver com a pedagogia, com a teoria de algum pesquisador. Nesse caso da tradicional, o próprio (Jean) Piaget, que é um dos inspiradores da metodologia construtivista, que a maioria das escolas tradicionais diz usar, ele não está presente de fato na organização básica da escola. O que a gente vê que ainda é básico: disciplina, memorização e repetição. Esses são os pilares da escola tradicional e isso se sobrepõe à fundamentação pedagógica. A educação começa a se institucionalizar na escola em um contexto muito violento. Com o passar dos anos, com a ampliação da consciência sobre o que significa primeira infância, as pessoas vão percebendo que existem consequências para o excesso de repressão. Aquelas crianças reprimidas crescem e não querem que seus filhos sejam reprimidos. Em paralelo a isso, a escola também vai ficando mais suave na forma de disciplinar, mas algumas coisas continuam como se fossem a coluna vertebral da escola, que é esse incentivo a um lugar mais passivo, disciplinado e que corresponde à preparação para a vida social de um período muito longo da nossa história, em que se esperava que as pessoas saíssem da escola prontas para a indústria, para uma indústria que não cria, que repete, que produz massivamente. Aquela ideia de trabalhador com uma resistência física muito grande, que não reclama, que se compromete, que não questiona a autoridade. Então, isso fica marcado, que a gente tem que sair da escola pronto para encarar essa sociedade do trabalho. Tanto que quando as pessoas falam que se tu não estudar, tu não vai ser ninguém na vida, elas estão falando do sucesso profissional.
Existem pesquisas mostrando que a maioria das profissões que vão existir nas próximas décadas ainda não foram criadas. Em um cenário como esse, quais habilidades serão necessárias nesse futuro mercado de trabalho?
O desenvolvimento social, tecnológico, a globalização, o surgimento das mídias, a velocidade da informação, de uma certa perspectiva cultural, também educam, porque informam, transmitem valores e as pessoas têm que lidar com isso. Mas, como foi muito rápido e a gente vinha de um sistema educacional muito rígido, pouco criativo e muito feito para uma produção repetitiva, a gente tem um contingente muito grande de pessoas que não estão preparadas para assimilar essas informações todas na cultura. As escolas atualmente, pensando em futuro, pelos fatos de elas manterem os princípios disciplinadores e a premissa de que aprender é algo que exige muito esforço, que não é natural, continuam indo na contramão do que parece ser a necessidade atual e o que parece ser o que se precisa para o futuro. O que as crianças desejam saber é secundário e isso vai matando a vontade de saber, vai criando uma certa resistência à busca pelo conhecimento, vai criando uma própria indiferença aos próprios sentimentos, e a consequência disso é uma formação de adultos que são o oposto e têm exatamente o oposto das habilidades solicitadas. O que seriam as habilidades solicitadas? A gente vê uma sociedade dinâmica que pede proatividade, autonomia, criatividade, capacidade de deliberação, disponibilidade para vinculação afetiva, respeito na convivência, capacidade de diálogo. A gente fica como se fosse encantado com a habilidade produtiva e esquece que o que vai garantir esse tipo de inteligência não é um saber técnico. Para a gente saber se relacionar, dialogar, ser proativo, criativo, deliberar, fazer boas escolhas, se vincular, vestir a camisa de onde a gente trabalha, criar, a gente precisa de habilidades que são ligadas a saber viver, a saber como fazer coisas básicas, a cuidar de si e do outro, saber se relacionar com a família, a cultura, se reconhecer no mundo que é diverso, rico, em que se tem desafios constantes. Essas competências não se aprende com discurso, com memorização, com repetição, tu precisa viver experiências que te façam sentir e compreender na prática esses desafios e, exercitando essas habilidades, é que tu te torna competente. Se tu pensa na escola tradicional, onde a gente mostra o que a gente sabe fazer? Em uma prova feita em um papel ou em apresentações orais. Isso não é ter experiência significativa com uma habilidade, é falar sobre uma habilidade. Ter conhecimento sobre História não é só saber repetir o que aconteceu. É saber perceber na sua vida real a História acontecendo também, para poder dar sentido àquela História do passado, para poder entender que existe a História do futuro. Saber Filosofia não é repetir o que os filósofos disseram, é compreender o raciocínio dele, porque eu sei raciocinar.
E em termos de exemplos práticos de como a escola pode se transformar para abarcar essa realidade, pode trazer algum?
Acho que o ponto central é a gente pensar sempre que o papel da escola deveria ser manter vivo o desejo humano natural de buscar o conhecimento. Para isso, antes de qualquer coisa, tem que respeitar aquele sujeito que chega na escola para aprender como alguém que participa do processo de ensino e de aprendizagem. A criança que chega na escola não é vazia, ela tem uma história, ela tem uma forma única de compreender o mundo, ela tem uma base familiar, ela tem o próprio jeito de sentir, de perceber, ela tem interesses. Depois disso, ao invés de ficar só repetindo oralmente ou reproduzindo informações, que a gente pudesse se tornar uma parte mais ativa no processo de busca do conhecimento. Ao invés de pesquisar simplesmente uma resposta que alguém deu, fazer o percurso de descoberta. Fazer experimentos, mas não só na ciência química e física. O terceiro ponto é poder ter uma noção maior da importância daquela parte que não é puramente racional. Entender a gente como ser integral que tem emoções, mas não fazer educação emocional da mesma forma que se vem fazendo educação racional com repetição de fórmula. Vou te dar um exemplo da nossa escola, que é organizada na metodologia montessoriana. Não somos nós adultos que criamos um currículo a partir de algum ideal abstrato do que deve ser compreendido. É o contrário: primeiro a gente observa o que ela está querendo saber... Então, vou criar um ambiente rico em experimentações para que ela possa testar as possibilidades a respeito do que quer saber. Eles vão lá testam, escolhem, vão por tentativa e erro descobrindo as possibilidades, e a gente está sempre ali como um apoio, para sugerir caminhos, desafios, transformar o ambiente. Se tem um conflito entre colegas, ao invés da gente ir lá resolver o conflito, colocar um do lado, outro do outro, chamar os pais, fazer um sermão, a gente pega um e diz assim: “fala pra ele, olha nos olhos dele e diz como tu se sentiu”. Espera ele falar. Vai para o outro: “fala para ele como ele se sentiu quando ele agiu daquela forma”. “Agora, o que você entendeu do que ele falou?” Então, ao invés de resolver para eles, a gente apoia eles na resolução.
Quando a gente fala nisso, fica mais claro que nestas metodologias fora das tradicionais, o papel do professor sai um pouco do protagonismo e do aluno deixa de ser um mero receptor de conteúdo. Isso é uma ideia central nas novas metodologias?
É, é central. Só que é bem importante demarcar o seguinte. Isso é uma construção. A autonomia é resultado de um exercício da liberdade onde aquele que ainda não é autônomo vai receber apoio de alguém que já é para chegar lá. E aí ele tem um caminho. Por exemplo: para que eu possa exercer a minha liberdade nas diversas esferas da minha vida, eu tenho que ter alguns passos que eu posso seguir. Então, primeiro: eu tenho que saber quem eu sou. Se sei minimamente quem eu sou, eu consigo identificar o que quero. Depois de identificar meu desejo, consigo ir para a terceira etapa, que é olhar para a minha realidade. Vou olhar para o mundo – e isso as crianças fazem lindamente – e começar a descobrir a relação de causa e consequência, e vou entender o que eu posso fazer nesse mundo. E, depois, a etapa mais complexa: quais são as consequências dessas escolhas que eu fiz, e aí vem a outra parte que é avaliar, em relação ao desejo inicial que eu tinha, a esse mundo e essas opções, com as escolhas que eu fiz, eu consegui realizar aquilo que eu queria? Então, esse é basicamente um percurso de exercício de liberdade. Eu posso usar isso não só de uma forma grande, mas em todas as pequenas coisas que faço na vida. Quando exercito isso nas diversas áreas da minha vida e me torno competente nesse exercício, que é em outras palavras, é ser capaz de fazer boas escolhas, de ter uma correspondência real entre o que eu quero e o resultado que eu obtenho, aí eu sou um sujeito autônomo, que significa um sujeito capaz de dar as próprias leis para a própria vida. Então, o professor tem que sair do centro, tem que ser um parceiro, um apoio nessa condução para que o indivíduo possa aprender a fazer o processo. Enquanto alguém faz por ele, chega só com o resultado e quer que ele aceite o resultado, um sujeito crítico, em primeiro lugar, vai rejeitar esse resultado. E os que aceitam, porque é tanta insistência, se acomodam, e param de tentar e passam então a vida só buscando fórmulas e resultados prontos para reduzir. Então, é central que a educação possa partir de um apoio e não de uma transmissão pronta ou de um sistema opressor, que impede a realização da experiência.
Em um país com diferenças socioeconômicas tão gritantes como o Brasil e com tantos desafios na educação, é possível implantar essas novas metodologias de uma forma ágil?
A metodologia Montessori, por exemplo, surgiu para famílias e crianças carentes na Itália. Não foi inicialmente implantada para escolas particulares e funcionou muito bem naquele contexto. O que a gente vê hoje no mundo é que isso foi se tornando privilégio de poucas escolas particulares no mundo, porque de algum modo, e a gente pode inclusive questionar, não parece ter sido assimilado ainda como algo relevante no ensino público a formação crítica e autônoma. Nas demais instituições particulares, a gente também não vê um movimento muito grande em direção à transformação dos princípios metodológicos, mas eu acho que o motivo é muito complexo. Acho que a escola tradicional é muito resistente à mudança por uma questão de hábito, de funcionamento estabelecido com muita força ao longo do tempo, e é difícil mudar algo assim. Tem uma resistência por parte dos professores, que se sentem inseguros com novas metodologias, e tem uma resistência cultural. Qualquer um de nós pode perceber que, enquanto sociedade, não conseguimos cumprir essas etapas da liberdade. A sociedade como um todo ainda está procurando alguém que resolva seus problemas de forma mágica. É um desafio da nossa cultura que as pessoas consigam ter senso crítico, autonomia, aprofundamento nas questões de ordem social, cidadã. Então, consequentemente também não compreendem e não exigem da escola de essa mudança. Outro ponto é que, por conta de todos esses fatores que dificultam, ela acaba se tornando cara. O investimento para esse tipo de escola acaba sendo maior. E não só o financeiro, tem ainda o investimento emocional, porque quem se dispõe a participar de uma comunidade escolar que está tentando romper com anos e anos de uma educação limitadora também vai ter que olhar para si.
Quando tiramos o aluno desse papel de mero receptor e o colocamos no centro do processo de ensino e aprendizagem, o que acontece com ele em termos de desenvolvimento cognitivo e psíquico?
É uma experiência que tive o prazer de viver várias vezes. Nas crianças especialmente, mas acho que isso se estende para várias faixas etárias, em geral as pessoas que são convidadas a sair de um lugar passivo de aprendizagem por recepção de informações prontas, a primeira reação delas é ficar esperando. Quando tu coloca uma criança que veio de uma escola tradicional ou de uma educação muito rígida, diante de uma sala onde todos os materiais estão na altura dela e ela pode escolher o que fazer, ela fica um tempo sentada sem saber o que fazer. A gente incentiva: tem essa opção, isso funciona desse jeito, dá para fazer isso, dá para fazer aquilo. E vai incentivando para ver se ela recupera aquela disposição de buscar o saber. Ela vai, mas na hora de experimentar algo novo, tem a sensação de que não vai conseguir. A gente escuta essa frase repetidamente de crianças que vêm desse contexto: eu não consigo, me ajuda, faz para mim. A gente vai ajudando ela a fazer por ela mesma. Essa é uma chave bem importante. Conforme isso vai acontecendo, a criança vai descobrindo que ela é capaz de novo e o olhinho volta a brilhar. E a gente reforça: viu, e eu não fiz para ti, tu conseguiu fazendo, foi tu que conseguiu. A próxima etapa do processo é um retorno de uma energia que tinha desaparecido. Montessori fala em dois tipos de situação que costumam acontecer com crianças reprimidas demais: ou ficam perdidas com uma energia muito grande que não conseguem canalizar, e normalmente são chamadas de hiperativas, ou ficam tão passivas que ficam paradas demais, não falam, hiper comportadas dentro dos padrões. Só que isso também não é natural para uma criança. Então, o resultado é o retorno de um equilíbrio de um ser que tem energia, espontaneidade, que busca, que se arrisca um pouco mais, que tenta... É bem lindo de ver o resultado. E depois disso ser exercitado bastante, a etapa final, que geralmente todos eles chegam na hora de ir para o Ensino Fundamental, perto dos cinco anos, eles começam a exercer a liderança, começam a querer ajudar os outros a fazer o mesmo caminho que eles. É bem lindo.