Eva Borges tem 68 anos, mora em Caxias do Sul e hoje é aposentada. Trabalhou por anos no comércio, onde atuou como vendedora e gerente em lojas da cidade, mas, atualmente, se dedica a atividades no Clube de Mães do bairro Desvio Rizzo. Ela faz crochê, tricô e agora vai aprender a pintar. Um dos seus programas preferidos também é curtir a neta de 10 anos, Valentina.
— Parei de trabalhar fora, mas viajo, estou sempre em movimento. Na minha certidão tenho 68 anos, mas eu não me considero velha pela idade. A velhice não é uma doença. Ser velho não te torna inútil. Hoje, os idosos têm vidas mais agitadas — acredita ela.
Neli Martins Zahn, 72, e Arlindo Zahn, 77, são casados há 50 anos e moram em Farroupilha. Ela trabalhava como cabeleireira e ele passou 40 anos atuando no comércio. Aposentado, o casal faz ginástica, lê bastante e tem uma paixão em comum: o jogo de câmbio, uma espécie de vôlei adaptado.
Esses três exemplos de pessoas acima de 65 anos, ativos e saudáveis, serão classificados, a partir de 1º de janeiro de 2022, como doentes. Isso porque a Organização Mundial de Saúde (OMS) irá publicar uma atualização da Classificação Internacional de Doenças (CID). Na CID-11, termo velhice será identificado sob o código MG2A, no capítulo 21. Com a proposta, a palavra senilidade (código R-54) será trocada por "old age" (código MG2A), que significa velhice. Isso significa que se, por qualquer motivo, eles ou pessoas acima de 60 anos, tiverem que procurar um médico a partir dessa data, o profissional de saúde poderá considerá-lo doente pelo simples fato de ele já ter 60 anos de idade, uma vez que para a OMS, em países em desenvolvimento a velhice começa aos 60 anos. Diante da polêmica provocada, a OMS declarou que está aberta à discussão do tema.
— Até hoje não nos consideramos idosos. Temos sempre uma coisinha, uma dor aqui e outra ali, mas é coisa passageira. Velhice com certeza não é doença — acredita Neli.
Ela e o marido frequentam há 15 anos o Centro de Idoso São José, em Farroupilha. O casal, ao lado de outros idosos, criou uma associação para praticar o jogo de câmbio mais de uma vez por semana:
— Hoje viajamos para outras cidades para jogar. Todos os envolvidos têm acima de 70 anos. Temos uma vida ativa e divertida — conta Neli, que também faz crochê, tricô, pinturas em vidro e em tecido para deixar a mente ativa.
"Mudança é um erro conceitual ", diz historiadora
A Classificação Internacional de Doenças é um conjunto de 55 mil códigos utilizados por profissionais de saúde, pesquisadores e formuladores de políticas públicas. Essa é 11ª atualização. A Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), braço da OMS para as Américas, esclarece que a CID não classificou velhice como doença, mas fez a inclusão porque a classificação agrupa fatores que influenciam a saúde. A intenção, segundo a Opas, foi substituir "senilidade" por um termo mais neutro a partir da sugestão de especialistas.
A sinalização de mudança tem provocado polêmica e preocupação em diversos setores da sociedade. No Brasil, parlamentares e especialistas protestaram contra a inclusão da velhice como doença. A avaliação deles é que o novo item pode impedir o registro correto das causas de mortes e aumentar a discriminação contra a população em idade mais avançada. A historiadora de Caxias do Sul Vania Herédia, que integra a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), alertou para a possibilidade de perda de dados sobre a população idosa por falta de detalhamento:
— Se esse CID for aprovado, vamos ter mais uma forma de discriminar o idoso a partir de um critério que seja a idade. É de alguma maneira surpreendente, eu diria até alarmante, saber que a velhice por parte de muitos países é considerada uma doença.
Vania acredita que considerar a velhice como uma doença é um erro conceitual e que uma das consequências negativas para essa definição é a falta de identificação de doenças que possam afetar os idosos.
— Com a mudança, se abre a possibilidade de aceitar diagnósticos terapêuticos sem base científica. Perderíamos também as descrições das outras doenças no momento em que o profissional da saúde, na hora do atendimento, ao invés de preencher, por exemplo, doenças respiratórias, diabetes ou doença cardiovascular, ele coloque "velhice" — diz.
Para ela, a mudança proposta pela OMS é uma contradição frente aos avanços das políticas de envelhecimento e à Década do Envelhecimento Saudável, estabelecida pela própria OMS, e que conta com uma série de ações para que os pessoas envelheçam bem.
"Envelhecer bem é um privilégio", defende geriatra
Atualmente, a CID é uma das principais ferramentas epidemiológicas no dia a dia dos médicos. A alteração, segundo o médico geriatra Dener Lizot Rech, pode levar a registros nos atestados de óbito sem a garantia de investigar a real causa das mortes. Isso, de acordo com o especialista, prejudicaria o controle de dados e a elaboração de políticas públicas.
— Se classificarmos velhice como doença, damos chance à criação e ampliação de rótulos e estereótipos negativos relacionados ao idoso. Também corremos o risco de relativizar tantas doenças e condições de saúde que, de fato, são comuns no idoso. Explico: em breve podemos ver uma verdadeira "epidemia" de mortes por velhice e, na verdade, o idoso faleceu de AVC, demência, infarto, câncer, infecção, etc. Isso irá mascarar as verdadeiras estatísticas — pontua o geriatra.
Para o médico, também professor de Geriatria da Universidade de Caxias do Sul (UCS), a sinalização é um equívoco e traz preocupação:
— Gosto da frase que diz "idoso é um jovem que deu certo". Envelhecer, e envelhecer bem, é um privilégio, e não algo com uma conotação negativa como doença. Tenho muito medo da bilionária indústria do antienvelhecimento, que se alimenta dessa utopia da juventude eterna, e que irá propor a cura da velhice. Com certeza essa classificação incentivará os falaciosos tratamentos anti-aging.
A psicologia também se preocupa com essa alteração proposta pela OMS.
— Analisando pelo lado da psicologia, essa alteração no CID não parece fazer sentido. Primeiramente, o termo velhice é bastante subjetivo. A definição de terceira idade varia entre os países. Aqui no Brasil, por exemplo, considera-se idosa a pessoa acima dos 60 anos de idade, ao passo que na Itália a pessoa só é considerada idosa a partir dos 75 anos. O que, exatamente padroniza o conceito de velhice? — questiona a psicóloga e especialista em comportamento, Renata Royo.
Ela lembra que hoje muitas pessoas consideradas idosas são ativas física e socialmente. Elas trabalham, são produtivas e independentes, e muitas não se enxergam como idosas:
— Somos capazes de buscar hábitos saudáveis dentro das nossas limitações. O problema aparece quando a sociedade age de maneira preconceituosa ao excluir essa parcela da população ou assumir que essas pessoas não podem ter autonomia. Esse é um problema que pode ser agravado ao associar-se velhice com doença.
Políticas públicas
Em julho, durante audiência da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa e da Comissão Externa da Câmara dos Deputados, os debatedores pediram que a OMS reveja essa modificação. Mesmo que tenha sinalizado aos parlamentares e especialistas que a agência está aberta a debater a mudança, ainda há uma série de preocupações sobre o avanço da nova classificação. No Brasil, hoje, a partir dos 60 anos, uma pessoa é considerada idosa.
— Até onde temos autonomia para reverter isso? Não temos, porque essa decisão vem de uma instância muito maior — ressalta a presidente do Conselho Municipal do Idoso (CMI) de Caxias do Sul, Danielle Cristina Lucena Rech.
Para ela a decisão é um retrocesso, que irá trazer consequências diretas nas políticas públicas voltadas aos idosos.
— Trabalhamos a questão do envelhecimento ativo, a autonomia do idoso. Então, pensar o idoso como patologia é um retrocesso. Foi um avanço a população perceber que a velhice é um ciclo da vida e que estamos vivendo mais — afirma.
Ela ressalta que a mudança ainda terá reflexos em diversos setores da sociedade:
— No mercado de trabalho um idoso não poderá ser contratado porque é doente? Ela terá um CID. Ele entrará como PCD? Tem vários aspectos que tem que ser analisados antes de se tomar uma decisão como essa. Tentamos trabalhar com o envelhecimento ativo, e isso traz um impacto social e mundial. Ter um CID que classifica como doente? O idoso será mais uma vez marginalizado quando temos políticas públicas para reintegrar essa parcela da sociedade. O Conselho do Idoso é totalmente contra — frisa ela.
Ela também é coordenadora do Centro Dia, um serviço de assistência, que fica no bairro São Caetano. Quando o assunto surgiu entre os idosos que frequentam o espaço, todos foram contrários a medida.
— Até os idosos que tem problemas neurológicos ou cognitivos consideram absurda essa questão de apenas o fato de ser idoso ser considerado uma doença.