Crianças retornavam para casa após a escola e moradores do Residencial Novo Futuro se preparavam para o almoço quando Cenair Nunes Machado, 20 anos, foi assassinado a tiros no pátio do condomínio popular no bairro Ouro Verde, em Bento Gonçalves, no final da manhã de terça-feira. Além de chocar a comunidade pela brutalidade do crime, o assassinato revoltou a família da vítima pelo desfecho ainda mais doloroso: Machado foi morto às 11h30min e o corpo dele ficou no local do crime até por volta das 20h de terça, quando a perícia chegou ao residencial. O velório só pôde ser iniciado por volta do meio-dia de ontem, mais de 24 horas após o assassinato.
— A pessoa sai para trabalhar e vê alguém morto no quintal de casa. Volta do trabalho e a pessoa está ainda ali, morta, no pátio. Havia as crianças brincando. Muitas mães tentavam segurar os filhos, que queriam ver o que estava acontecendo. O corpo do jovem ficou o dia inteirinho no sol, coberto pela lona. É desesperador, sinto vontade de chorar de tristeza — resumiu uma moradora ouvida nesta quarta-feira pelo Pioneiro.
A perícia demorou cerca de oito horas para chegar ao condomínio em virtude da falta de efetivo do Instituto-Geral de Perícias (IGP). A situação não é nova, tampouco fácil de resolver, já que o cenário é de crise na área da segurança pública. No caso de Cenair Machado, a espera foi prolongada porque os profissionais do IGP precisaram se deslocar até Vacaria quando o crime aconteceu em Bento. Acionada para fazer o levantamento no carro de um homem desaparecido, a única equipe do IGP disponível levou mais de três horas para chegar ao local, às margens da BR-116, quase na divisa com Lajes (SC). Já era noite quando os servidores chegaram ao residencial Novo Futuro. O clima entre os familiares era de desolação.
— É uma situação horrível. Nós conseguimos velar meu irmão 24 horas depois. Não tem como não se revoltar, olha a demora só para conseguir receber o corpo. A gente só queria uma despedida honesta — desabafa Cristiano Fernandes, irmão da vítima.
O corpo só foi liberado para a funerária por volta das 10h de ontem. Segundo Adriana Giacobo, proprietária da Funerária Giacobo, que fez o sepultamento, a demora não é inédita, principalmente em Bento Gonçalves. O corpo de Cenair Machado foi velado por pouco mais de três horas.
— Nós ligamos às 18h30min de ontem (terça) questionando porque ainda não havia chegado. E, até onde sabemos, a necropsia do corpo só se iniciaria às 7h30min de hoje (ontem). Enquanto isto, a família fica desassistida, à espera — afirma a empresária.
Acidentes
A demora não é exclusiva de casos de homicídios. No fim de semana, a família de Gabriel Bourscheidt, 19, também precisou associar paciência à dor da perda de um jovem no trânsito. No sábado, o rapaz participava de uma trilha de moto na cidade de Barão quando se acidentou e morreu. A espera para a chegada da perícia se aproximou a quatro horas, tempo considerado normal pela Polícia Civil daquele município.
Sequência de ataques assusta moradores do residencial
Esta não é a primeira vez que os moradores do Residencial Novo Futuro testemunham a violência muito perto de casa e a aflição das famílias pela liberação do corpo de vítimas de crimes. No final de julho, por exemplo, Jean Carlos Viana Lippert, 28 , foi morto a tiros dentro do apartamento dele. O crime ocorreu logo após a meia-noite do dia 27. O velório, porém, só se iniciou por volta das 21h do dia 28.
— Veio gente de longe para acompanhar o velório, e não conseguiram ficar porque tudo começou muito tarde. O sofrimento só aumentava conforme o tempo passava. Tivemos de fazer o enterro logo cedo, não conseguimos nos despedir direito dele — lamenta a avó de Lippert, a aposentada Leodina Soares Viana.
A morte de tantos jovens tem causado sensação de pânico entre moradores do Novo Futuro. Segundo uma das lideranças dos prédios, que pediu para não se identificar, foram pelo menos nove tentativas de homicídios só neste ano e seis assassinatos.
— O que parece é que as pessoas de bem querem sair daqui e só ficam os invasores. Machuca a gente ver gente morta nas escadarias, dentro do apartamento, no pátio. A gente reza para que ninguém atinja os trabalhadores que moram aqui — desabafa uma moradora.
O loteamento Ouro Verde, onde fica o condomínio, assim como bairros Eucaliptos e Municipal, são os locais que a Brigada Militar mais diz dar atenção em Bento Gonçalves. De acordo com o capitão Diego Caetano, comandante da 1ª Companhia do 3º Batalhão de Policiamento de Áreas Turísticas (3º BPAT), a presença dos policiais é constante:
— Porém, no momento em que não estamos lá, um suspeito reconhecido, que inclusive está no semiaberto, tem cometido esses crimes. Depois, ele foge e nunca o encontramos em situação de flagrante. Apenas temos os relatos de que ele é o suspeito. Aguardamos a investigação da polícia judiciária.
A motivação das execuções, mais uma vez, é a disputa pela venda de drogas.
— Já temos alguns suspeitos identificados. Estamos trabalhando para evitar novos crimes e prende-los em flagrante. Nossa presença lá tem este objetivo — afirma Caetano.
A autoria dos homicídios segue em apuração na Polícia Civil, que não repassa informações em razão de as investigações serem sigilosas.(Colaborou Leonardo Lopes)
Coordenadoria do IGP na Serra deve receber mais dois servidores
Titular da 2ª Coordenadoria Regional de Perícias (2ª CRP), com sede em Caxias do Sul, Airton Kraemer afirma que o número de profissionais disponíveis na unidade _ que responde por 55 municípios na Serra _ representa apenas 35% do necessário: são apenas cinco peritos (o ideal seriam pelo menos 15) atuando em plantões de 24 horas.
—Infelizmente, situações com demora não são pontuais. Acontecem, sim, porque não há gente suficiente para atender a todas as ocorrências — justifica.
A boa notícia, conforme o coordenador, é que há expectativa de que dois novos profissionais concursados ingressem na equipe em breve.
— Esperamos que em novembro, após os novos peritos passarem por treinamento, conseguiremos uma escala de sobreaviso, fazendo com que situações como esta (demora na perícia) se repitam com menos frequência — destaca Kraemer.
Para se ter um ideia do quanto a situação na Serra é preocupante, no segundo semestre do ano passado, a 5ª Coordenadoria Regional de Perícias, com sede em Santa Maria, na região Central, e responsável por 51 municípios de pequeno e médio porte, nenhum com o tamanho e número de homicídios semelhantes aos de Caxias do Sul, contava com 10 peritos criminais.