
As dificuldades enfrentadas pela Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) de Bento Gonçalves servem de exemplo para a futura UPA de Caxias do Sul. A afirmação é do médico nefrologista Paulo Jandrei Martins Rodrigues, 62 anos. O profissional coordenou a área médica da UPA de Bento durante seis meses. Na terça-feira, pediu afastamento da função alegando a precariedade do serviço.
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Rodrigues lista problemas como a falta de medicamentos e de equipamentos adequados para exames e diagnósticos, o que implica num atendimento insatisfatório à população. Além disso, vê o modelo da UPA refém da crise hospitalar do SUS. O serviço é mantido com verbas federais, estaduais e municipais.
A unidade de Bento foi aberta em junho do ano passado. É referência para 22 municípios e atende uma média de 10 mil pessoas/mês. Em Caxias, a prefeitura não tem prazo para abrir a UPA Zona Norte, apesar do prédio ter sido concluído há quase dois anos. A justificativa da Secretaria da Saúde caxiense é de que ainda estão pendentes várias licitações para a aquisição de mobiliário e equipamentos.
A prefeitura de Bento Gonçalves informou que se manifestará sobre os apontamentos de Rodrigues em nota oficial ainda nesta quarta-feira.
Além da crise na UPA, os moradores de Bento enfrentam a greve dos médicos terceirizados, contratados pela Fundação Araucária. Os profissionais deixaram de atender consultas nas unidades básicas de saúde desde o dia 28 de dezembro em protesto contra os constantes atrasos de salários.
Confira abaixo a entrevista concedida por Rodrigues ao Pioneiro.
Pioneiro: O senhor citou a falta de medicação e equipamentos na UPA. O que está acontecendo?
Paulo Jandrei Martins Rodrigues: Além da falta de material, de medicação, não tem aparelhos de diagnóstico. É tomografia que não tem, é aparelho de raio-x que não tem. Se tenho um paciente acamado que precise fazer raio-x na UPA, tenho que tirar ele, chamar a ambulância e levar no prédio do lado, a 30 metros. Imagine uma UPA com 10 mil pessoas/mês não ter isso. Se tu visitar a UPA em Canoas, em Vacaria ou em Porto Alegre todas têm. Outra coisa: contratar especialista. Não tem nenhum neurologista para ajudar, não tem cardiologista para ajudar. Para salvar os pacientes, o médico fica numa situação muito difícil. A secretaria transferiu um pronto atendimento básico para uma UPA de porte 3, onde pelo contrato deveria atender 22 municípios. Agora imagina como vai atender se não tem as mínimas condições. Só tem as condições básicas de atendimento. Chega o politraumatizado e eu não tenho tomografia para fazer na cabeça dele. Aí tu telefona para a Central de Leitos, telefona para o Hospital Tacchini, dependendo do risco do paciente é um parto de porco-espinho.
Que prédio é esse do raio-x?
É o antigo PA, onde está o raio-x antigo, que é de 1970, as piores condições de raio-x, de imagem. Tem que tirar paciente do leito, botar numa maca, chamar a ambulância para andar apenas 30 metros. Mas não é só isso. Tem a dificuldade de se encaminhar pacientes para o hospital. Bento só tem um hospital que é referência, e a secretaria (da Saúde) assinou um novo contrato com o Hospital Tacchini, onde se cortou várias coisas. Se tenho um paciente enfartado não posso levar pro Tacchini, tenho que contatar primeiro para a Central Regional de Leitos que é em Caxias. Caso não consiga, tenho que colocar ele na Central do Estado. Ele só vai pro Tacchini se estiver sob o risco de morte. Agora pergunto: e se é um familiar teu? Isso não se faz com nenhum paciente. E a Secretaria da Saúde fez coisa alguma, jamais bateu o pé para pedir melhores condições. Pensei: sou o responsável técnico, isso ainda vai estourar nas minhas mãos. Decidir sair antes.
O senhor menciona a falta de medicamento básicos
Falta. Um exemplo: na semana passada ou retrasada tínhamos um paciente com dor torácica. Sempre se inicia o tratamento com aspirina, AAS, coisa que todos os cardiologistas dão. Não tinha AAS para dar ao paciente. Comprei uma caixa de AAS infantil para dar ao paciente.
Esses problemas foram comunicados?
Diversas vezes. Mas parece que só veem a parte política: o prédio é muito bonito, sempre limpinho e tal. Mas dinâmica e o funcionamento é muito ruim.
Há pacientes sem atendimento adequado?
Teve vários casos. Um paciente entrou em choque cardiogênico (incapacidade do coração de bombear sangue). Ele ficou três dias esperando leito e piorou. Foi encaminhado para o Tacchini e ficou na UTI. Até não sei se esse paciente escapou . Outro exemplo: paciente que tem um AVC (acidente vascular cerebral). Para diferenciar se é isquêmico ou hemorrágico tem que fazer uma tomografia. Mas a secretaria liberou somente 10 tomografias para uma cidade de 130 mil habitantes, numa UPA que atende 10 mil pacientes/mês.
O que acontece quando se atinge a cota da tomografia?
Se telefona para a Central de Regulação, para encaminhar para Caxias, para Porto Alegre e nem sempre se consegue. Então se apela para o bom senso dos colegas. Eu era coordenador da UPA e também trabalho na emergência do Tacchini. Telefonava para meus colegas que aceitavam receber pacientes na base da amizade.
Há profissionais suficientes?
Tem, mas com um pequeno problema: são profissionais formados há pouco tempo.
Temos uma UPA para ser inaugurada em Caxias.
Fala então com a Dilma (Tessari, secretária da saúde) para ela vir dar uma olhada na UPA de Bento antes de abrir aí. Tem muita cidade que teve UPA e não abriu por falta de condições de funcionamento.
Por que então foi aberto o serviço em Bento?
É uma questão política. Abriu assim pra imprensa, pra população, mas e as condições? Aí alegam o problema da crise, dinheiro que o governo não repassa, um empurra para outro, é Estado, é governo federal.
Se um paciente grave entra na UPA não há certeza de como será o atendimento?
É. Isso é uma coisa que a população não sabe.
O senhor cita ingerência na equipe?
Sim. A UPA tem uma politização partidária. Duas CCs escalam horários e horas extras sem me comunicar. Também pressionam para que outros se filiem a partido. Eu diria que isso é assédio moral.
Pacientes permanecem vários dias acamados na unidade?
Sempre. Teve uma senhora de 84 anos que o cardiologista encaminhou para UPA para ela ser levada para um hospital de referência. A necessidade era implantação de marca-passo. Ficou sete dias ali. Na UPA não tem hotelaria, não tem café, almoço, não tem nada. É a mesma coisa que ter um paciente diabético e quando tu vê ele está tomando Coca-Cola e comendo pastel.