Uma das séries mais assistidas do momento, O Urso (The Bear, disponível no Disney+) se desenrola na cozinha de um restaurante na cidade de Chicago, nos Estados Unidos. Entre os tantos dramas que a tornam irresistível, um dos mais explorados é a tensão criada entre cozinheiros de diferentes gerações, que chegaram àquele momento de suas carreiras com ou sem conhecimento acadêmico ou formação profissional. Nisso, as diferentes maneiras de trabalhar com a comida e no atendimento ao público, além do conflito de vaidades e personalidades fortes, formam a trama perfeita que já soma três temporadas de sucesso.
Saindo da dramaturgia para as cozinhas de uma região como a Serra, reconhecida e procurada por sua gastronomia, modos mais tradicionais de fazer culinária têm dividido cada vez mais espaço com técnicas modernas e refinadas, aplicadas por chefs que unem o conhecimento que vem do berço familiar com o ensino acadêmico. Nos últimos 20 anos cursos superiores de gastronomia se multiplicaram, a fim de atender à demanda de um público mais exigente, que passou a valorizar a refeição como uma experiência.
- Nosso mercado precisa de capacitação e a oferta maior de escolas é primordial para que isso aconteça. Hoje temos uma culinária muito mais diversificada na região, ao mesmo tempo em que as pessoas estão buscando cada vez mais a experiência quando vão fazer uma refeição fora. Neste sentido, conhecer as técnicas e as condições para criar e elaborar cardápios que tragam esta experiência diferenciada é o grande foco quando a gente estuda gastronomia _ explica o diretor administrativo do Sindicato das Empresas de Hotelaria e Gastronomia de Caxias do Sul, o Segh, Rafael Rizzi, também empresário no setor gastronômico.
Em Farroupilha, um dos restaurantes e hotéis mais conhecidos no entorno do Santuário de Caravaggio é o Bem Te Vi. Na cozinha, a experiência da proprietária Zélia Zucco, se soma ao conhecimento da filha, Francieli Galafassi, 35 anos, graduada em Gastronomia pela Unisinos. Além da formação superior, Francieli pôde aprimorar suas técnicas na Itália, com bolsa de estudos de um programa voltado para brasileiros descendentes de imigrantes. A experiência não apenas enriqueceu seu repertório, como a fez se apaixonar pelo preparo de sobremesas que, na volta ao Brasil deram um toque especial à mesa do café da manhã no hotel.
Francieli diz que não foi fácil aplicar técnicas e conceitos vistos em sala de aula no negócio da família. Se, após cursar as primeiras disciplinas na faculdade, a jovem tinha a ideia de que iria revolucionar, com o tempo aprendeu que o melhor caminho era buscar o equilíbrio, respeitando a tradição:
- Eu pensava que iria mudar tudo, porque as técnicas que eu aprendia no curso eram muito diferentes do que eu vivia aqui na cozinha, aprendendo com minha mãe. Foi um professor quem sugeriu que aquilo que a gente tinha de mais tradicional deveria ser preservado, como a cultura de servir na mesa, do “bastantão”, mas que mesmo assim alguns conhecimentos eu poderia aplicar. Assim, passei a controlar mais o desperdício, trabalhar com ficha técnica, usar temperos mais naturais, mas sem mexer no cardápio. Minha mãe e eu dividimos bem o espaço, mas eu sei que a cozinha é dela.
"Nosso aluno é instigado a ter uma cabeça pensante, que consiga ter mais autonomia para liderar"
Entre os cursos superiores que a cada semestre entrega uma nova leva de cozinheiros para os restaurantes da região está o do Centro Universitário da Serra Gaúcha - FSG. Coordenadora do curso, a chef Gabriela Tonolli explica que a característica de uma formação superior de curta duração permite manter a grade curricular, que é atualizada a cada três anos, mais alinhada às tendências do mercado:
- A gente forma cozinheiros. Mas, diferente de ter só a parte mais prática da cozinha que um curso técnico oferece, nosso aluno é instigado toda hora a ter uma cabeça pensante, que consiga ter mais autonomia para liderar uma equipe, maior noção de custos, de empreendedorismo, de nutrição. São noções sobre como como criar um cardápio mais equilibrado, de ter uma cozinha que atenda todas as questões de higiene e legislação, fatores essenciais para quem vai trabalhar com alimentação.
A professora destaca ainda que o curso é procurado por um perfil bastante heterogêneo, que tem em comum o amor pela cozinha e que veem na Gastronomia também uma oportunidade de prosperar.
- Temos alunos que saem do ensino médio e querem ser cozinheiros, outros que desejam trabalhar fora do país e buscam uma especialização para ter uma colocação melhor no mercado do exterior, há os que trabalham em outra área completamente diferente, mas que querem migrar para uma área que tenha mais paixão envolvida. E, claro, tem muitos que fazem o curso porque trabalham no negócio da família e querem melhorar processos, atualizar cardápio e trazer o restaurante mais para perto das tendências do momento - elenca.
Cardápio pode ser autoral, mas "comida tem que vender"
A chance de prosperar na cozinha foi abraçada pelo jovem chef caxiense Arthur Perini, de 24 anos, responsável pelos sofisticados restaurantes Beatrice, junto à Vinícola Perini (o sobrenome é coincidência) , e Q Restaurante, no centro de Caxias do Sul. Ambos os negócios são administrados junto com o pai, Vicente, também proprietário do espaço para eventos Quinta Estação.
Graduado pela Escola de Gastronomia da UCS, Arthur equilibra na cozinha o tradicional que aprendeu com o pai, como o preparo de risotos e do churrasco na brasa, a parrilla, e o autoral.
- Hoje o conhecimento sobre gastronomia está em todo lugar, muito mais acessível do que para a geração do meu pai. Quando quero inventar um prato, gosto de espalhar diversos livros sobre uma mesa e ir buscando as referências, além das que pego nos programas de TV ou na internet. Então, é diferente do acesso que meu pai teve quando tinha minha idade. Mesmo assim, toda a base da comida italiana eu aprendi com ele - comenta.
Alguns dos pratos criados por Arthur estão entre os mais vendidos do serviço a la carte do Q, com destaque para uma lasanha de pupunha. Também foi o primeiro em Caxias a servir pirarucu. O gosto por trabalhar com frutos do mar, inclusive, foi fruto de uma das viagens que fez pelo Brasil, neste caso, ao Pará, para estudar culturas gastronômicas regionais. O jovem cozinheiro, no entanto, realça que de nada vale um prato criativo que não venda:
_ Tem muita coisa que eu gostaria de poder implementar, mas que ainda não sei se seriam bem aceitas pelo público. Nestes seis anos que estamos aqui (com o Q Restaurante), sentimos que a clientela tem se mostrado mais aberta a experimentar novos sabores, mas não podemos abrir mão dos clássicos. O que fazemos é buscar um meio termo, entre o cardápio mais raiz e o mais refinado.
Da cozinha do pub para a feira do produtor
Embora compartilhe com os demais personagens desta reportagem o amor pela gastronomia, Marciane Gaviraghi optou por outro caminho após vivenciar a experiência de liderar sua própria equipe, na cozinha de um pub de Farroupilha, onde mora.
- Era uma equipe pequena, de seis pessoas, mas todos estavam ali bem como eu já tinha estado, para fazer um extra, sem muita preocupação com o resultado. Aquilo me incomodava porque eu já tinha passado a trabalhar com um cuidado muito grande pela comida, então fui me sentindo frustrada, e saí depois de alguns meses - conta.
A farroupilhense, que antes da pandemia trabalhou em uma empresa que fabricava alimentos para uma companhia aérea, na Austrália, partiu novamente para o exterior, desta vez para a Itália. Na meca da gastronomia, procurou um curso básico e não tão extenso, mas que permitisse elevar seu nível de especialização. Foi no estágio do curso, na cozinha de um restaurante, que descobriu uma nova vocação dentro do ramo:
- A galera gostava daquela adrenalina do fogão, e eu também curtia. Mas passei a prestar a atenção no “nonno” que trabalhava apenas fazendo pães e pizzas, e ao ver meu interesse ele me chamou pra colocar a mão na massa junto com ele. Tinha também outro setor que fazia biscoitinhos, que ninguém gostava de fazer, mas eu gostava mais do que o fogão. Assim fui encontrando algo que tinha mais a ver comigo.
Após retornar ao Brasil, em agosto do ano passado, Marciane passou a experimentar receitas de focaccias em casa e postar nas redes sociais, ainda sem a confiança de que poderia abrir seu próprio negócio. A aceitação do público, a começar pelo círculo mais próximo de relações, até constituir uma pequena clientela, deu o impulso para formalizar sua empresa e passar a comercializar suas focaccias e outros tipos de pães e bolos artesanais regularmente na Feira Livre do Produtor Rural, que ocorre às quartas-feiras e sábados.
- Foi um caminho bacana que encontrei, porque eu moro longe, em Linha Ely (próximo ao Salto Ventoso), e, mesmo recebendo bastante encomendas na rede social, tinha a dificuldade de entregar os produtos. A feira passou a ser também esse ponto de entrega, além de ajudar a aumentar as vendas - comenta.