A cada mês de novembro, sempre na segunda quinzena, ergue-se no histórico Largo da Estação Férrea, em Caxias do Sul, uma cidadela de 11 mil m². Por três noites ela irá abrigar 12 mil pessoas, que chegarão de mais de 150 cidades do Brasil e do exterior. Para atende-las, é mobilizada uma mão de obra que chega a 500 trabalhadores. Se tudo beirar à perfeição, no ano que vem os visitantes irão retornar. E assim tem sido: dos cerca de 10 mil espectadores de novembro passado, 87% eram pessoas que retornavam, enquanto 13% chegavam pela primeira vez ao Mississippi Delta Blues Festival. Em sua 12ª edição, o maior festival de blues da América Latina deve agregar pelo menos R$ 2,5 milhões à economia caxiense, considerando apenas despesas com hospedagem, alimentação e consumo dos visitantes, que representam 30 a 40% do público total.
Festivais de música são tidos como grandes apostas para alavancar o turismo – e, consequentemente, a economia – das cidades onde são realizados. No ano passado, este setor movimentou quase R$ 500 milhões na economia brasileira. Para empresas, é uma oportunidade de levar sua marca a uma plateia sedenta por entretenimento e por experiências de vida. O MDBF, sigla do festival de blues caxiense, tem a sua marca atreladas quase 100 empresas, entre patrocinadores, apoiadores e expositores. Serão quase 50 estandes, que irão disputar a atenção nas brechas deixadas pelos mais de 50 artistas, espalhados por seis palcos, ao longo de quase 30 horas de programação.
A partir do próximo dia 21, todos estes números irão se cruzar no grande parque temático do MDBF, que seguirá até sábado. Por três noites, Caxias do Sul se transforma numa grande festa dedicada à arte, cultura e gastronomia do Sul dos Estados Unidos. Por três dias, pouco se falará que não seja em blues.
Beto Grazziotin, o homem do “leva e traz”
O trabalho de bastidores de um festival é incessante, por vezes extenuante. A equipe que se inicia com três pessoas no início do ano, chega a 500 trabalhadores durante o evento. Um batalhão dividido em pelotões destinados a atender acessos, bares, camarins, contra-regras, almoxarifado, entre outras tantas funções que se complementam numa sintonia fina. Para que o acorde que sai da guitarra de um Larry McCray ou de Eddy “The Chief” Clearwater chegue limpo aos ouvidos do público, por exemplo, é preciso uma equipe de técnicos de som que se multiplica pelos seis palcos, em comunicação incessante via rádio. Nenhum cabo pode falhar ou provocar ruídos indesejados à experiência de quem paga até R$ 300 por um ingresso, muitas vezes gastando as economias de meses para ter aquelas três noites de diversão e de histórias para contar.
– Nestes 10 anos eu já comuniquei minha demissão cinco vezes pelo rádio. Mas acho que é só uma forma de desabafar, porque no ano seguinte eu sempre volto. O festival é mais do que um trabalho, é uma causa para a qual a gente se doa. O grande barato é perceber como as pessoas são capazes de dar um pouquinho mais de si quando estão unidas – destaca o motorista Beto Grazziotin, 40.
Desde a segunda edição do MDBF, em 2009, Grazziotin comanda a logística de transporte dos artistas. Amigo de infância do idealizador do festival, Toyo Bagoso, Grazziotin é responsável por buscar os músicos no aeroporto, transportá-los até o hotel e finalmente até o camarim. Por estabelecer um contato mais próximo, especialmente com os estrangeiros, mais dependentes de intérpretes ou tradutores, seu trabalho às vezes envolve percorrer as lojas de instrumentos atrás de uma corda específica para o instrumento ou atender a caprichos como sair pela cidade em busca de uma sopa nas primeiras horas da madrugada.
Entre as histórias saborosas do ofício temporário, o motorista conta da vez que teve de fazer uma corrida às pressas até o hotel, porque determinado artista achou que o cinto dourado que deixou no quarto combinava mais com a iluminação do palco.
– Também á fui atrás de costureira pra pregar o botão que caiu da calça e até de remédio controlado que foi extraviado no aeroporto. Por ser a primeira pessoa que eles têm contato tão logo descem do avião, seja do produtor ou do músico, acabo sendo esse faz-tudo – conta.
Grazziotin recorda que, no seu primeiro MDBF, as dimensões do evento ainda o permitiam fazer toda a movimentação em um único veículo. A estrutura atual demanda oito veículos, entre carros, vans e ônibus de empresas parceiras, além de oito motoristas que atuam sob sua coordenação.
– Posso dizer que a jornada de trabalho começa à meia noite e segue até 23h59min. A gente não para. Mas quando chega ao fim a gente se abraça e chora junto, já com saudade de tudo o que passou e torcendo para que o próximo ano passe rápido para poder viver tudo isso de novo.
Muito além da música
Desde sua quinta edição, o Mississippi Delta Blues Festival abriga o Blues Art Ville. Democrático, o estande reúne criações de artistas plásticos e visuais consagrados e outros que muitas vezes não encontram espaço nas galerias mais disputadas. Responsável pela curadoria, a produtora cultural Mona Carvalho estima que cerca de 80 artistas diferentes já tenham passado pelo espaço, que neste ano contará com 20 participantes, incluindo trabalhos individuais e coletivos. Para os criativos, que são provocados a produzir com a temática do blues, é uma oportunidade de ganhar visibilidade, fechar negócios e receber encomendas.
– Já vendi para pessoas de Pelotas, Porto Alegre, Lajeado, além de bastante gente de Caxias do Sul e da região. É uma chance de estarmos em contato com um público que sabe valorizar a arte, que sai de casa para curtir um evento de blues, mas que chega com a cabeça aberta para apreciar espetáculos de dança, performances teatrais, tudo o que o festival tem para oferecer. Também é incrível receber o reconhecimento dos artistas. Às vezes um elogio de um cara como Bob Stroger (baixista e cantor de Chicago, grande ícone do blues) é uma recompensa maior do que uma venda – vibra o artista plástico Eduardo Peres, que desenvolve esculturas com sucatas de ferro e irá participar pela sexta vez do Blues Art Ville.
Novos horizontes
Empresário à frente do Mississippi Delta Blues Festival e um dos proprietários do bar homônimo do Largo da Estação Férrea, Toyo Bagoso elenca argumentos para o sucesso do festival e o consequente interesse de tantas marcas se associarem ao evento. Um dos principais é o fato do evento se manter democrático, sem áreas de acesso privilegiado ou camarotes. Além disso, a organização cedeu às
tentações de aumentar o tamanho do festival, equilibrando quantidade e qualidade.
– Já tentamos aumentar o número de palcos e a quantidade de ingressos, mas começamos a ouvir algumas reclamações sobre filas ou sobre a dificuldade de circulação, por isso freamos. Já faz alguns anos que chegamos ao tamanho e orçamento (em torno de R$ 1 milhão) que consideramos definitivo. O visitante precisa ter tranquilidade para trazer uma criança ou alguém de mais idade e a experiência ser boa para todos – comenta.
Também pesa, segundo Toyo, os diferentes modelos de parceria que o evento oferece.
– Depois que bateu a crise econômica e nós tivemos a troca de alguns patrocinadores importantes, intensificamos a filosofia das trocas e permutas, para a qual o mundo caminha. Temos muitos apoiadores menores, que muitas vezes não tem o dinheiro para entrar com uma grande cota de patrocínio, mas tem o produto que para nós é importante. A gente faz então uma parceria de relacionamento, fornecendo ingressos para essas empresas, que trazem seus clientes pra cá – exemplifica.
Além de já ter levado o MDBF para o Rio de Janeiro (a primeira edição foi em maio deste ano e a segunda está confirmado para maio de 2020), o festival também deve desembarcar em Gramado, durante o Festival de Cinema. Toyo ainda estuda a viabilidade de passar a realizar o evento também em Bento Gonçalves.
MDBF em números
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