
Mais do que o jogo de fole no acordeon ou a batida no contrapasso que marca o ritmo, o bugio tem o gosto do pinhão, o cheiro de araucária e a ginga do macaco que balança de galho em galho nos pinheiros. Enraizado nos Campos de Cima da Serra, o único gênero musical genuinamente gaúcho está prestes a ser reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial do Estado do Rio Grande do Sul.
A solicitação do reconhecimento partiu das prefeituras de São Francisco de Assis, nas Missões, e de São Francisco de Paula, na Serra, que formalizaram a solicitação junto ao Iphae. Os dois municípios disputam historicamente a "paternidade" do bugio, mas concordaram em fazer uma trégua a fim de que se reconhecesse que, acima de tudo, o bugio é dos gaúchos.
Um passo importante para alcançar a chancela ocorreu justamente na edição mais recente do Ronco do Bugio, festival criado em 1986 em São Francisco de Paula, dedicado exclusivamente ao ritmo e que, anualmente, premia as melhores composições dentro da temática e das características musicais, assim como os melhores intérpretes e instrumentistas. Realizado em agosto do ano passado, teve como parte da programação o seminário "Bugio, origem e história do ritmo e festival", no qual esteve presente a secretária de Cultura do Estado, Beatriz Araújo, que garantiu seu apoio ao pleito.
No início de março, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae) encaminhou o Parecer Técnico Sobre o Inventário do Ritmo Musical Bugio para a Câmara Temática do Patrimônio Cultural Imaterial, que dará a palavra final. O documento de 17 páginas pode ser acessado no site da Sedac.
Músico e pesquisador, autor do livro "O Ritmo Musical do Bugiu" (com U para diferenciar do animal, segundo regra sugerida por Adelar Bertussi), Israel da Sóis Sgarbi explica que o bugio, como gênero musical, agrega contribuições de diversas tradições e etnias, sendo assim impossível dizer que nasceu aqui ou ali, como que num insight de um único tocador.

- Todo mundo tem um pai e tem uma mãe, ninguém nasceu do nada. Com a música é a mesma coisa. Meu ponto de partida sobre o bugio é que a sua origem está em melodias muito simples que eram tocadas na gaita de botão, com duas três notinhas, mas que com o tempo foram aprimoradas. Teve a influência da imigração italiana, que trouxe o acordeon, a influência indígena, dos rituais em volta da fogueira, da música caipira paulista e mineira que veio com os tropeiros birivas, dos saberes e fazeres do gaúcho de Cima da Serra. Foi toda uma soma de fatores - aponta Israel, cuja obra tem entre as principais fontes pesquisas iniciadas e deixadas em manuscrito pelo próprio Adelar Bertussi.
O pesquisador destaca que o reconhecimento do bugio como patrimônio cultural serve também para provocar o poder público no sentido de promover ações que ajudem a garantir a preservação do gênero musical e também do legado de músicos que são referência como compositores e intérpretes do bugio:
- O Rio Grande do Sul, especialmente a Serra Gaúcha, é berço de alguns dos maiores acordeonistas do mundo. Falo dos Irmãos Bertussi, de Albino Manique (fundador do grupo Os Mirins), de Edson Dutra (fundador do grupo Os Serranos), são mestres que precisam ser reverenciados e estudados. É papel do poder público garantir que eles não caiam nunca no esquecimento.
Incentivo à cultura e ao turismo
A 32ª edição do Ronco do Bugio está marcada para ocorrer nos dias 29, 30 e 31 de agosto, no CTG Rodeio Serrano, em São Francisco de Paula. Se tudo ocorrer dentro do previsto, o festival poderá ser também uma grande celebração da conquista da chancela de Patrimônio Cultural Imaterial do Estado. Assim espera o secretário municipal de Turismo, Rafael Castello Costa:

- Este reconhecimento não é importante apenas no sentido de inventariar um patrimônio, mas também no de olhar para quem somos, para a nossa essência. Recentemente passamos por processo semelhante em relação ao nosso modo de preparo do queijo artesanal serrano, que também foi importantíssimo. Toda essa valorização mexe com a autoestima do nosso povo serrano.
Ao longo dos últimos anos, o município de 21 mil habitantes passou a contar com um calendário recheado de eventos musicais, como parte de uma estratégia para atrair cada vez mais visitantes. Desde então se consolidaram o São Chico Beatle Festival, o Festival de Choro da Serra Gaúcha, o Paralelo Festival e, por último, o Mississippi in Concert, com shows de blues. Seja pelo rock 'n'roll ou pela música regionalista, o mais importante é saber que música boa sempre irá reverberar pelos lados do Lago São Bernardo ou da Avenida Júlio de Castilhos:
_ De uma maneira muito democrática a gente está trabalhando para que São Chico seja conhecida como a cidade da música e dos festivais, e dentro desta estratégia queremos fortalecer ainda mais o nosso Ronco do Bugio como produto cultural e turístico, atraindo visitantes de todo o Rio Grande do Sul. Ao mesmo tempo, a história deste gênero musical e a origem do festival vai estar sendo contada na Casa Amarela (imóvel tombado recentemente para receber um museu), o tema vai ser trabalhado nas nossas escolas, e assim toda a cidade irá se envolver e compartilhar este orgulho _ comemora o secretário.
"Doralice" colocou ordem na casa

Saber quem seria a Doralice (ou Doralícia) do "Casamento da Doralice" importa menos do que saber que esta música composta pelos irmãos Adelar e Honeyde Bertussi e lançada em 1956, no LP Coração Gaúcho 2, é o primeiro bugio gravado. Independente do que houvesse antes, este registro norteou o que viria a se definir como bugio a partir de então:
_ "O Casamento da Doralice" é a soma de pequenas melodias tocadas na região, que Honeyde e Adelar juntaram com muita felicidade numa mesma composição. Tem a pacholice da contação de causo, a estrutura das melodias, tem o jogo de fole, tem o solo dos baixos da mão esquerda, tem um pedaço de letra cantada que veio dos versos que a mãe deles, Jovelina, cantava no tanque de lavar roupas, e assim eles criaram o esqueleto de uma coisa que foi super legitimada e aprovada. E a partir disso vieram todos os outros bugios, inspirados na "Doralice" _ explica Israel Da Sóis.
Herdeiro do legado da Música Bertussi, o acordeonista Gilney Bertussi, filho de Adelar e sobrinho de Honeyde, considera que os irmãos estariam felizes em ver que a música da qual eles foram os principais divulgadores - para além de terem ajudado a dar a ela forma e conteúdo - será reconhecida entre as grandes contribuições da arte para a cultura gaúcha:
_ Quando eles começaram a fazer a Música Bertussi, e junto a ela o bugio, sendo os criadores da música gaúcha bailável como a conhecemos, eles não tinham noção da dimensão que aquilo tomaria. Não tenho dúvida que eles estariam muito felizes e realizados. Como representante deste legado, tocando em bailes há mais de 40 anos e fazendo parte dos esforços para alcançar o reconhecimento como Patrimônio Histórico, também fico muito feliz em ver que o trabalho está sendo valorizado.