O alerta para a psicóloga Daniela Grolli, 35 anos, sobre a condição da mãe ocorreu em uma corriqueira ida ao dentista. Ao sair do consultório, Jocelira Grolli, 69, a Lila, percebeu que havia esquecido onde tinha estacionado o carro. Depois desse, vieram outros episódios: o esquecimento de palavras, a depressão, até a chegada do diagnóstico para o Alzheimer.
A identificação da doença neurodegenerativa transportou Daniela e as duas irmãs, Rafaela e Gabriela, para um processo "inverso" de cuidado, cada vez mais comum com o envelhecimento da população, que resulta em filhos que se tornam cuidadores dos pais.
O que as quatro reconheciam até então como uma hierarquia familiar ganhou um novo formato, exigindo que as filhas tomassem as decisões sobre a vida da matriarca. Primeiro, veio a retirada do carro. Depois, a contratação de uma cuidadora. A atitude mais recente e, descrita como mais difícil para Daniela, foi a de mudar Lila para um residencial de idosos. A sensação, para a psicóloga, é o de viver uma espécie de luto:
— Porque é uma existência que passa a ser diferente. A minha mãe deixa de existir dentro da casa dela, do quarto dela, do banheiro dela. É uma vida que existe, mas não existe mais da forma com que conhecíamos. É difícil, porque tu foi criada por eles (pais), os vê como autoridades, mas, ao mesmo tempo, tem que se tornar a autoridade na vida deles — desabafa a psicóloga.
Os desafios da família Grolli exemplificam uma realidade que está se tornando cada dia mais comum nos lares brasileiros. Com o avanço do envelhecimento populacional, o ato de atender e se responsabilizar pelos pais tornou-se uma necessidade em muitos núcleos familiares. A condição de algumas destas pessoas, inclusive, ganhou recentemente a nomenclatura de "geração sanduíche". O termo se refere a homens e mulheres que cuidam dos filhos e dos pais ao mesmo tempo.
Para Cristiano Sobroza Monteiro, doutorando em Antropologia Social pela Unicamp-SP e professor de Antropologia da Universidade de Caxias do Sul (UCS), esse fenômeno está alicerçado em diferentes aspectos e reflete mudanças demográficas, culturais e econômicas que impactam profundamente as dinâmicas familiares — de agora e as futuras.
O prolongamento da vida ativa dos filhos – com maior dependência financeira e saída tardia de casa – cria um cenário em que as gerações se sobrepõem de forma intensa em termos de cuidado
CRISTIANO SOBROZA MONTEIRO
Professor de Antropologia da UCS
— O aumento da expectativa de vida e a queda nas taxas de natalidade geraram uma nova estrutura etária, com mais idosos e menos jovens para dividir responsabilidades. Além disso, o prolongamento da vida ativa dos filhos, com maior dependência financeira e saída tardia de casa, cria um cenário em que as gerações se sobrepõem de forma intensa em termos de cuidado. Esse rearranjo reflete um retorno às funções tradicionais da família como unidade de suporte mútuo, mas em um contexto em que as redes comunitárias e de assistência estatal muitas vezes falham em oferecer apoio adequado — salienta.
O antropólogo sinaliza, no entanto, que o papel de filhos como cuidadores pode variar em cada cultura, sendo menos comum em alguns países europeus, por exemplo.
— No Brasil, os valores de reciprocidade e interdependência familiar permanecem fortes, perpetuando a ideia de que é natural que os filhos cuidem dos pais em sua velhice. Esse fenômeno, no entanto, não é universal. Em sociedades onde o individualismo é mais presente, os cuidados são mais frequentemente delegados a instituições especializadas, o que aponta para variações culturais na forma de lidar com esse desafio — justifica.
"As decisões são totalmente racionais"
Para além das questões emocionais, assumir a responsabilidade sobre Lila também mudou a rotina das filhas. Os sábados de Daniela, por exemplo, são dedicados para a mãe. Não se trata, contudo, de uma obrigação, mas, sim, de uma escolha por estar mais perto da genitora e, ao mesmo, aliviar um sentimento de culpa que insiste em se manifestar.
A decisão de cuidar dos pais é totalmente racional, porque se for emocional, não fazemos o que precisa ser feito
DANIELA GROLLI
Psicóloga
— O residencial nos ajudou muito, mas daí vem os questionamentos. Será que eu não deveria estar cuidando dela? Será que estão cuidando como eu cuidaria? (...) Por isso que eu sempre falo que a decisão de cuidar dos pais é totalmente racional, porque se for emocional, não fazemos o que precisa ser feito — reflete a psicóloga.
Analisando outros aspectos da chamada geração sanduíche, o antropólogo Cristiano Sobroza Monteiro, aponta que o cuidado familiar ainda recai preponderantemente sobre as mulheres, gerando, em muitos casos, sobrecarga física, emocional e financeira.
— O fortalecimento de redes de apoio, como creches acessíveis e programas de assistência a idosos, é essencial para aliviar essa carga. Contudo, para transformar essas relações de maneira duradoura, é necessário um trabalho cultural mais profundo, que envolva a redefinição das expectativas em relação ao papel de homens e mulheres no cuidado — acredita.
Experiência profissional para apoiar a mãe
A professora de Educação Física Evelise Bissaco Weber acredita que o trabalho com idosos desde a faculdade a ajudou a compreender e lidar com o envelhecimento da mãe dela, Therezinha Luiza Spinato Bissaco, 90 anos.
A aposentada vive em um residencial há cerca de um ano e meio e foi diagnosticada com Alzheimer em 2017. A mudança para um ambiente especializado exigiu um processo de adaptação da família, com permanências mais flexíveis, durante poucas horas. Atualmente, com a moradia bem-estabelecida, as visitas de Evelise são acompanhadas por atividades e estímulos para que a mãe se sinta ativa e não perca as memórias afetivas.
É um processo que não é muito fácil, porque nos deparamos com o envelhecimento dela e sabemos que ela está se despedindo de nós aos pouquinhos
EVELISE BISSACO WEBER
Professora de Educação Física
— É um processo que não é muito fácil, porque nos deparamos com o envelhecimento dela e sabemos que ela está se despedindo de nós aos pouquinhos. Eu procuro levar fotos antigas e conversar bastante para que ela nos reconheça e grave quem somos. Eu estou sempre estimulando, tanto a parte física, quanto cognitiva — explica Evelise, que acrescenta:
— Acredito que a Educação Física me deu muito essa visão de não olhar o ruim acontecendo, mas ver as possibilidades de coisas boas que eu posso trabalhar com ela.