À convite do Almanaque, autores da Serra escreveram crônicas destacando personagens que marcaram suas vidas em 2023. Os convidados foram Patrícia Viale, Nil Kremer, Valquíria Vita, Marcos Mantovani, José Clemente Pozenato e Douglas Ceccagno.
Leia a seguir o texto do professor e escritor Douglas Ceccagno.
Meu personagem do ano é...
Se a poesia não morre, os poetas continuam vivos. E foi a Carlos Drummond de Andrade que resolvi retornar, vítima de uma náusea necessitada de flores – e da amplitude de seus vazios.
Então, se a escolha do personagem do ano segue entendimentos individuais e impressões momentâneas, por que não eleger um poeta em um ano qualquer para louvar-lhe a perenidade? Com o tato cuidadoso para não amassar as mais de novecentas páginas da Nova reunião, coleção de 23 livros em um, lidos agora em sequência, tento deter-me alguns minutos em cada poema, nesses dias em que se compra até a vida poética quase inteira de alguém em um único volume.
Essa é a leitura possível de Drummond em 2023. Se eu fosse contemporâneo de sua existência terrena, em corpo magro, alma vasta e óculos agudos, teria conhecido "Alguma poesia" 15 anos antes de "A rosa do povo", e então esperaria mais seis anos para ser arrebatado pelo "Claro enigma". Decerto, essa minha personagem do ano 2023 não é a mesma de 1930, 45, 51… É uma totalidade, um ler ou não ler, sem possibilidade de meditar em meios termos, de penetrar detalhadamente no reino das palavras, de procurar a chave que esqueci na infância ou virou retrato na parede. Ainda assim, leio e sinto. Às vezes não entendo: e como é bom!
Na linguagem de Drummond, um áporo tem pelo menos três sentidos; a máquina do mundo, na estrada de Minas, não revela nada porque o poeta não pretende ver. Gloriosa dádiva adentrar a sombra dos versos e não reconhecer sentidos exatos! Verso não precisa dar noção, disse Manoel de Barros. E a gente aí, nesse 2023, com tanta explicação sobre tudo, explicação demais. Até mesmo na poesia, expressão mais humana do mistério, mais próxima dos deuses, mais aberta ao imponderável.
Drummond nos recorda que, malgrado a existência profana cada vez mais avassaladora, ainda existe a possibilidade de buscar os símbolos para o que desconhecemos, de encontrar caminhos para o que pressentimos com força de intuição. Num tempo de mensagens inspiradoras para consumo fugaz, de heróis para vender livro e filme e série, é reconfortante lembrar de nossas derrotas coletivas, nossas falhas humanas, nossos homens partidos, e de escutar outra vez a esperança do anjo torto. Drummond escreveu que seu legado seria apenas uma pedra em meio do caminho. Alquimicamente falando, uma pedra é melhor que todo ouro de tolo.
DOUGLAS CECCAGNO é autor de “Eu é muitos outros” (poesia). Doutor em Letras pela PUC-RS, é professor e pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Letras e Cultura e professor dos cursos de Letras da UCS.