Mais um novo ano se descortina. Cada um com suas listas de desejos e planos a esboçar. Em todas as áreas, em todas as esferas sociais, dilemas se impõem como obstáculos para que os sonhos e projetos se concretizem. Falando especificamente sobre a cultura, além dos desafios de sempre, que serão abordados nessa reportagem, ainda recai sobre os ombros de quem trabalha com esse material tão sensível e, nem sempre, tangível, a luta pela valorização dessa cadeia produtiva. Um dos pontos que pode ajudar nessa valorização é o mapeamento da abrangência da chamada economia criativa.
Contudo, faltam dados para estabelecer todos os elos dessa corrente, que funciona como uma engrenagem e se retroalimenta e, no final da ponta, tem com objetivo emocionar, reafirmar a história, discutir identidades e apontar caminhos para o futuro.
Por exemplo, ainda não é possível dimensionar os processos e valores envolvidos desde a confecção de um tecido, por exemplo, até o aplauso fervoroso de uma plateia ao final de um evento. Esse tecido é adquirido por alguém que vai criar um figurino para uma peça de teatro. E, por sua vez, esse espetáculo emprega uma dezena de pessoas, entre atores, produtores, cenógrafos, além de toda equipe técnica (som e luz), sem falar na divulgação, geralmente realizada por um assessor de imprensa. Quando a peça chega ao fim, e cerra o pano à espera dos aplausos, um grande número de pessoas esteve envolvido para essa apoteose.
— Eu vejo que dimensionar a cultura, em Caxias, é também uma das formas de sermos mais assertivos na formulação de políticas públicas. Como vamos planejar a cultura sem saber de números, como quantos trabalhadores temos e em que áreas? O processo de planejamento da cultura demanda dados, também quantitativos, até para falarmos em investimento financeiro, precisamos saber qual o impacto disso no âmbito financeiro econômico — avalia a produtora cultural Caliandra Paniz Troian.
Em 2020, a economia brasileira contava com mais de 935 mil profissionais criativos formalmente empregados, o que representa um aumento de 1,8% na comparação com o ano de 2019 e de 11,7% em relação ao último Mapeamento da Indústria Criativa, realizado com dados de 2017, pela Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan). Como se vê, são poucos os dados e quando existem estão defasados.
Esses movimentos ocorreram num cenário de retração do mercado trabalho brasileiro, que recuou 0,1% no período de 2017 a 2020 e 1,0% apenas em 2020. Analisando-se as informações agregadas, nota-se que o mercado de trabalho criativo se mostrou relativamente sólido diante das relevantes oscilações político-econômicas que marcaram esses últimos anos.
Um dos desafios — não apenas local — é dimensionar o setor cultural dentro da engrenagem da economia criativa, servindo de ponte entre o poder público, produtores, agentes e artistas, com a comunidade em geral, que não só é plateia, mas pode vir a se beneficiar dos frutos financeiros gerados com o fomento dessas atividades.
Em meio aos desafios, uma troca de comando
No período de apuração dessa reportagem, entre o final de dezembro de 2022 e janeiro deste ano, eis que a prefeitura de Caxias do Sul noticiou a troca no comando da Secretaria Municipal da Cultura, que desde segunda-feira vem sendo conduzida, de forma interina, por Magali Quadros, que assume no lugar de Aline Zilli.
Como a entrevista já estava agendada, apesar da troca de comando, as duas toparam receber a reportagem na sede da Secretaria, na Estação Férrea. Aliás, o espaço deve ser em breve revitalizado. Depende ainda, no entanto, de a prefeitura de Caxias do Sul conseguir interessados para o edital de licitação. Novas propostas devem ser conhecidas no dia 23 deste mês. O valor previsto é de R$ 7,6 milhões.
— Já era programado, de algum tempo, para que eu fechasse esse ciclo, saindo do cargo e sigo com meus projetos e vou tocar a minha vida. E, ao mesmo tempo, é o momento que o governo está se reorganizando. E a Magali assume interinamente e ficam com ela os desafios para 2023 — explica Aline Zilli.
— Porque assim damos sequência sem atrito e, se chegar uma nova pessoa, vamos fazer uma transição mais fluida possível. Importante que a gente avance sem perder tempo com coisas desnecessárias — complementa Magali.
Além de elencarem uma série de avanços nestes primeiros dois anos de gestão, dentro do governo Adiló, como a ampliação do valor do Financiarte, retomada do Prêmio Anual de Incentivo a Montagem Teatral e realização do Plano Municipal da Cultura, Magali e Aline revelaram quais são os desafios dos próximos anos da pasta.
— Para esse ano, um dos desafios é a criação e implementação do cargo de agente cultural. Nós já encaminhamos a nossa parte do estudo para a Secretaria de Recursos Humanos e, em breve, deve tramitar na Câmara de Vereadores para fazer a aprovação. E, quem sabe, pela primeira vez termos um concurso para a Secretaria da Cultura. O que já conseguimos foi indicar uma dotação orçamentária, para a criação do cargo, e isso já foi aprovado na LOA (Lei de Orçamento Anual). E agora, temos de conseguir equilibrar e ajustar com as finanças, para que depois de aprovado pela Câmara, possamos lançar o concurso — revela Aline.
Entre os desafios que mais aparecem na pauta dos produtores e artistas locais está a tão sonhada desburocratização e digitalização dos processos, que, inclusive, foi promessa de campanha de Adiló Didomenico.
— Desburocratizar é uma luta constante, e encontrar os caminhos dentro da legalidade para que a gente consiga facilitar a produção, a circulação e o consumo. Estamos sempre procurando evoluir e a nossa grande esperança é o Marco Regulatório e que a gente consiga convencer as pessoas de que é importante. Temos de ter uma legislação só nossa, porque são especificidades que nos dizem respeito. A burocracia, muitas vezes, se dá na tentativa de entrar em um sistema que nós não nos enquadramos — pontua Magali.
Aline revela a dificuldade que existe, em muitas vezes, do próprio governo compreender essas especificidades da Secretaria da Cultura.
— Uma esperança que temos de poder avançar nisso, não sei se ainda para 2023, é a revisão da lei do Financiarte, que, esperamos, seja muito mais parecido com o FAC, nos moldes do governo estadual. Até porque, hoje temos um contato muito próximo com o Tribunal de Contas do Estado que dá orientações importantes que nos auxiliam a trazer essa proposta para o município. Mas, infelizmente, enquanto Secretaria da Cultura, nem sempre conseguimos fazer com que esse entendimento circule entre os outros que estão nessa hierarquia como nós. Por isso, estamos sempre buscando novas informações e trazendo experiências de fora para dentro do governo para entender como podemos atender à economicidade e à transparência dos setores de uma forma melhor e não mais engessada. Por isso, é um esforço em conjunto para mudar muitas mentalidades — pondera Aline.
Confira, a seguir, o que pesam produtores culturais que atuam em Caxias do Sul:
Robinson Cabral, produtor cultural e realizador audiovisual
Eu acho que o maior desafio que a gente tem para 2023 diz respeito à profissionalização do setor como um todo. Temos Leis de Incentivo, temos empresas apoiadoras, temos um polo educacional vibrante e temos recursos humanos súper capacitados.
Só nos falta uma política pública que perceba o valor econômico da cultura e o impacto dos investimentos nela que reverberam na educação, na segurança e no bem-estar do cidadão caxiense.
Nosso orçamento para cultura até pouco tempo atrás era cerca de R$ 20 milhões por ano. Hoje, a secretaria opera com a metade disso, pois o poder público não entende cultura como mola propulsora de empregos e como ferramenta de cidadania. Em Caxias do Sul, estamos ‘sentados’ em cima de uma ‘mina de ouro’ cultural e econômica e a gerimos de forma ultrapassada, conservadora, ingênua e, por vezes, amadora e analógica.
Só a profissionalização do setor vai fazer com que, com o tempo, a comunidade em geral reconheça e perceba o valor da cultura que produzem e o impacto positivo da mesma em nossas vidas.
Juliana Pandolfo, produtora cultural e diretora executiva da Tum Tum Produtora
O primeiro ponto é desburocratizar e simplificar as questões no poder público. E cada vez mais a burocracia tem aumentado nesse governo municipal. Temos percebido que tem ficado mais difícil trabalhar com as leis municipais. Então, desburocratizar e simplificar, ter um sistema informatizado para os projetos pra gente trabalhar. Então, está na hora do poder público investir em um sistema de inscrição de projetos online. Acho que facilitaria muito, porque, atualmente, temos de entregar pilhas e pilhas de papel.
Com relação a cultural, no geral, da parte do poder público é sair da mesmice. O grande desafio de Caxias é sair da mesmice para um 2023 plural, de fato, voltado para a classe artística e para os produtores. Para que a gente tenha mais respeito. Criatividade é o ponto chave para sair disso. Somos uma cidade de cerca de 500 mil habitantes, capital da Serra gaúcha, temos condições de ampliar e ligar a cultura ao turismo, pegar essas duas secretarias tão importantes, é fundamental que sejam pastas mais interligadas. Percebemos o quanto é difícil conseguir aprovação para usar os espaços públicos, também por causa da burocracia.
Luciano Balen, coordenador da Fundação Marcopolo
Primeira coisa, tem um contexto que deve ser lembrado sempre. Caxias é uma cidade que passou um momento, vamos dizer, quase mutilada, por causa de um entendimento errado quando se vendeu uma ideia fantasiosa e ruim de que cultura não seria importante. De que naquele momento, havia outras prioridades que não a cultura. E estamos, agora, sofrendo as consequências disso.
Caxias nunca foi contra a cultura. É uma cidade que sempre foi muito a favor, olha a quantidade de CTGs que a gente tem, como estão preservados os valores que herdamos dos nossos ancestrais da Itália. Então, é uma cidade que só falta o entendimento de que a arte está contida na cultura. Minha visão é otimista, mas temos essa tarefa da arte, dentro da cultura, como uma ferramenta da tão sonhada inovação, tão sonhada Caxias que quer ser um polo de criatividade e inovação.
Por fim, é inescapável. Ou a gente como cidade entende a importância da cultura da memória, do livre acesso, que tenham a chance de frequentar as bibliotecas, de ir aos teatros, ou passamos a ser uma cidade divertida e cosmopolita, conectada com o sentimento de urbanidade, e ao mesmo tempo, sabermos de onde a gente veio, que éramos a Pérola das Colônias, ou a gente vai perder esse trem da história.
Caliandra Troian, produtora cultural
Temos uma diversificação atual, não apenas dos agentes e produtos, mas de olhares e de experiências. Mas o gargalo principal, hoje, não se trata da produção do espetáculo ou da criação em si. Mas vamos pensar que Caxias é do tamanho que é e temos um teatro municipal apenas, e não temos a estrutura que deveria ter e, por isso, acabamos até perdendo a oportunidade de trazer mais espetáculos de fora para cá.
Tem se tornado difícil produzir em Caxias, justamente pela infraestrutura estar precária, os equipamentos não têm atualizações e os espaços deveriam ser melhor qualificados. Além disso, o poder público deveria melhorar o regramento de uso dos espaços públicos.
Precisamos também que as pessoas que trabalham com a cultura tenham acesso à agenda de reserva dos espaços de forma mais transparente. Temos o Centro de Cultura, com cinema e a Sala de Teatro Valentin, bem precária, e nesse mesmo espaço, uma enorme infraestrutura administrativa, que poderia ser melhor aproveitada. A Estação Férrea, por sua vez, é referência em festivais, mas está fechada por causa do processo revitalização, mas temos de olhar pro espaço potencial de ações culturais.
Mapeamento local
Uma das ferramentas que a Secretaria da Cultura de Caxias do Sul pretende desenvolver ainda mais em 2023 é o armazenamento e disponibilização dos dados para que seja possível ter mais informações a respeito de que trabalha nesta área ampliando a rede de contatos entre produtores e artistas. Além disso, pode servir também para embasar a criação ou melhoria de políticas públicas para o setor em Caxias do Sul.
Para participar e inserir seus dados, veja a seguir em que área você se enquadra. O link geral este. E a seguir os links das quatro áreas disponíveis. Mesmo quem já fez o cadastro precisa atualizar as informações anualmente.
Leis de fomento
Caxias do Sul - A Secertaria da Cultura disponibiliza ao setor a Lei Municipal de Incentivo à Cultura, fundo de financiamento (Financiarte), retomou ainda o Prêmio Anual de Incentivo à Montagem Teatral, além de ter beneficiado artistas por meio de repasses da Lei Aldir Blanc, e de auxílios emergenciais. Para saber mais clique neste link.
Bento Gonçalves - Recentemente foi lançada mais uma edição do edital "Cultura - Criar e Apresentar", do Fundo Municipal de Cultura. As inscrições estão abertas e seguem até o dia 3 de fevereiro de 2023. São disponibilizados recursos financeiros na ordem de R$ 1,04 milhão, fixando tetos financeiros por finalidade e por projeto concorrente que variam de R$ 3o mil à R$ 35 mil. Mais informações neste link.
Garibaldi - O projeto Film Commission visa captar produções cinematográficas na cidade, estabelecendo parcerias com o trade local e produtoras de cinema. Uma produção audiovisual movimenta a economia local quando desloca uma equipe para filmagens. Em troca, o município ganha visibilidade, mídia espontânea, engajamento da comunidade e do comércio, movimentando a rede hoteleira e gastronômica. Saiba mais acessando este link.