Diante de mais de 500 pessoas que lotaram o auditório do Colégio São José, em Caxias do Sul, o teólogo, escritor e filósofo Leonardo Boff ministrou na noite de terça-feira a palestra “Direitos Humanos, Direitos da Mãe Terra – Somos todos irmãs e irmãos?” Em pouco mais de uma hora, o intelectual abordou a urgência de se pensar um modelo do que chama de cidadania ecológica pós-pandemia, com olhar igualmente atencioso aos excluídos e à natureza.
Aos 83 anos e com 60 livros publicados, o catarinense de Concórdia é o representante latino-americano da comissão que criou o documento Carta da Terra, em prol da proteção social e ambiental. Radicado em Petrópolis-RJ, Boff viu de perto os danos que o uso desordenado de recursos naturais pode ocasionar à humanidade - o município foi vítima de um desastre ambiental em fevereiro deste ano, quando enchentes e deslizamentos de terra provocaram mais de 230 mortes. De pé e dispensando o pedestal para microfone oferecido, o palestrante alertou sobre o fato da própria pandemia de Covid-19 ser resultado da relação abusiva do homem com a natureza.
- Estamos vivendo uma emergência ecológica que deve nos levar a reclamar os direitos de ter um ambiente ecologicamente sadio, com água potável, com alimentos que não sejam transgênicos, com ar respirável. Tudo isso pertence à nova cidadania, que nasce dessa visão ecológica. O coronavírus veio de nós, seres humanos, que agredimos violentamente a terra, desmatando de forma abusiva, destruindo habitats naturais que fizeram o vírus pular para outros animais, e de lá veio para nós. Temos de desenvolver uma consciência que faça rever nossos hábitos, nossa relação com a Mãe Terra, que seja benigna, amorosa e cuidadosa. Não podemos voltar à velha normalidade que produziu o vírus.
Com uma trajetória ligada à Teologia da Libertação, corrente da igreja católica mais ligada às causas sociais e ao compromisso com os mais pobres, Leonardo Boff citou diversas vezes trechos de encíclicas do Papa Francisco (apreciador da Teologia da Libertação) e criticou o desrespeito à dignidade humana pela lógica capitalista. Diz ter perdido 12 quilos por “desgostos” com a crise ecológica, com a pandemia, com o governo Federal e com a guerra na Ucrânia:
- O ser humano é um fim em si mesmo e não pode ser usado como um meio para outra coisa. Não pode ser escravizado. Ele é um valor absoluto e uma realidade sagrada, como diriam os romanos. Grande parte dos direitos humanos são atropelados, porque se globalizou o sistema de produção, de consumo, de repartição dos bens, de forma extremamente perversa. Uma economia de mercado foi transformada numa sociedade de mercado, onde tudo é vendável e tudo ganha preço, até um órgão humano. Já não vale o respeito, a solidariedade e o amor às pessoas, porque isso não pode ser vendido.
Aproveitando a ocasião da Semana Santa, Boff mencionou o período de celebração da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo como um momento de reforçar a solidariedade com os necessitados:
- Amar os próximos é amar os invisíveis, amar os últimos, os desconhecidos. Agora que estamos na Sexta-Feira Santa nós iremos venerar o Cristo morto, mas o verdadeiro Cristo está nos pobres que passam fome, que estão nas periferias. Aí está o Cristo vivo e com os quais ele se identificou, ao dizer: “quando vocês deram de comer e de beber a esses, foi a mim que vocês deram”. Ir além da veneração do Cristo morto e da grande cruz. É encontrar o Cristo vivo que está nas ruas caído por aí, dar a ele alguma coisa, não negar nada a ele.
Recorrendo mais uma vez aos ensinamentos e reflexões do Papa Francisco, Boff também discorreu sobre a necessidade dos seres humanos se encontrarem com a sua espiritualidade a fim de melhor responder o “chamado ético e espiritual” para o cuidado com os mais necessitados e com a Mãe Terra.
- Não basta uma ética social e ecológica: nós temos que ter uma espiritualidade. Espiritualidade é algo mais profundo do que religião. É uma fonte que está em nós e que se revela pelo amor, pela solidariedade, pela compaixão, pela capacidade de perdoar, pela convivência fraterna. O Papa repete muitas vezes preferir um ateu que tem sensibilidade aos pobres, que ama a justiça e a verdade, do que o pobre que vai sempre à missa e comunga, mas não olha para os lados e não vê os seus irmãos passando fome e miséria.
A palestra foi promovida por um conjunto de entidades, entre elas o Sindicato dos Professores (Sinpro-Caxias), o Sindicato dos Bancários de Caxias do Sul e Região, Sindicato dos Servidores Municipais (Sindiserv), Projeto Mão Amiga, Cáritas Diocesana e a União das Associações de Bairros.