Contrastando com os rostos sérios e solenes dos santos que adornam as paredes, as risadas e a descontração têm marcado as manhãs de quarta-feira no Museu dos Capuchinhos, em Caxias. É nestes dias que a equipe do museu recebe as mulheres de uma associação de recicladores do bairro Esplanada, num projeto que busca inclusão e inserção através da arte e do empoderamento, ressignificando a relação das trabalhadoras com os objetos do seu próprio fazer diário, cuja vida não necessariamente precisa se encerrar após o descarte. Nem tudo que se joga fora, afinal, é lixo.
O Frei Celso Bordignon e a equipe técnica do museu foram os idealizadores da iniciativa intitulada “Mulheres e arte: a trajetória do recriar”. O projeto foi contemplado com o 10º Prêmio Ibermuseus de Educação, que reconhece práticas colaborativas entre espaços museais e as comunidades em países da América Latina, além de Portugal e Espanha. A proposta, que iniciou antes da pandemia e só foi retomada no último mês, consiste em oferecer às mulheres, além da oportunidade de fazer arte a partir de objetos que iriam para descarte, palestras sobre o papel da mulher na arte e na sociedade, e sobre a importância do trabalho dos recicladores para a sociedade.
Na última quarta-feira, a interação ficou por conta do casal de artistas plásticos caxienses Giovana Mazzochi e Douglas Trancoso, ou apenas Gio e Doug. Conhecido por utilizar materiais de descarte em suas obras, o casal propôs a seis mulheres que participaram da oficina produzir rostos feitos com garrafa, jornal, papietagem (técnica derivada do papel machê) e tinta acrílica. Outra atividade consistiu em misturar diferentes objetos levados pelas participantes para criar peças ou brinquedos. Assim um dinossauro de brinquedo sem cabeça virou um dinossauro-astronauta com uma lâmpada no lugar onde faltava a cabeça, e dezenas de tampinhas de garrafa viraram flores que compuseram um bonito e colorido porta-chaves.
– É uma abordagem que começa pelo empoderamento, de mostrar a importância do trabalho delas para a sociedade e para a preservação de vidas humanas, animais e vegetais. E também há o lado de oferecer a elas um conhecimento que pode ser levado para o seu cotidiano, talvez como uma fonte extra de renda ou mesmo criar novos brinquedos com suas crianças – comenta Gio.
Para a artista, unir arte e inserção social vai além de oferecer um momento de recreação. Trata-se de uma troca também proporciona mais saúde e autoestima:
– Para nós, como artistas, são momentos como esse que dão sentido à vida, por poder transmitir o poder curativo que a arte tem. Às vezes alguma delas chega um pouco chateada, até estressada, mas logo está toda sorridente e mais leve.
Entre as participantes, a maioria com filhos ou netos pequenos em casa, poder levar para seus pequenos um pouco daquilo que aprenderam na oficina foi o maior estímulo. Maria de Fátima da Silva, 60, que há 16 anos cumpre jornada na esteira onde são separados os materiais para reciclagem, conta que as oficinas e atividades do projeto a fazer sentir seu ânimo renovar.
– Nosso trabalho é estressante, tem mais a família em casa, mas quando sento aqui e começo a pintar, desenhar, me sinto uma menina de novo. No dia seguinte estou mais disposta. Tenho um neto de três anos que adora inventar brinquedos, está sempre imaginando uma coisa nova, e quero poder levar algo daqui pra ensinar pra ele – conta Fátima, moradora do bairro Montes Claros.
Colega de Fátima e das demais participantes do projeto na Associação de Recicladores Carroceiros do Aeroporto - ARCA, Franciele Borges, 32, gostou tanto do projeto que pesquisou grupos e páginas nas redes sociais de pessoas que divulgam arte feita com materiais de descarte. Foi ela quem levou as tampinhas de garrafa para fazer o porta-chaves com flores, a partir de um trabalho que descobriu num desses grupos. Pediu as tampinhas para um cunhado que trabalha em uma lancheria, e contou com a ajuda da filha, de 9 anos, para separar por cores. Para Franciele, colocar a mão na massa é a melhor parte do projeto:
– A gente teve as palestras no começo, que foram legais, mas eu não sou de ficar sentada ouvindo sem fazer nada (risos). Quando começaram as oficinas fiquei bem mais empolgada – conta a recicladora, que mora no bairro Esplanada.
Outra atividade oferecida pelo projeto foi um passeio até o Centro de Cultura Ordovás, onde as participantes puderam conhecer melhor o equipamento cultural público e conferir as exposições nas galerias. Franciele, que só tinha ido à sala de teatro anos atrás quando a filha participou de uma apresentação da escola, gostou da experiência:
– A gente imagina que vai entrar e só vai ver um monte de quadros pendurados nas paredes, mas daí acaba descobrindo o quanto a arte pode ser muito mais que isso e estar por todo lugar.
EXPOSIÇÃO EM DEZEMBRO
Antes da oficina com Gio e Doug, as recicladoras também tiveram uma aula de desenho e pintura com o Frei Celso Bordignon, e na semana seguinte visitaram a artista plástica caxiense Daniela Antunes. As mulheres recicladoras foram até a casa da escultora, em Monte Bérico, para conhecer o seu atelier e aprender um pouco sobre o uso da argila como obra-prima para a arte, além de produzir suas próprias peças. Daniela comemorou a experiência:
– Gostei muito de participar deste projeto com essas mulheres, que na maioria são as responsáveis pelo sustento de suas famílias. Pensei na aula como algo que fosse realmente agregar na vida e principalmente no trabalho delas, como a questão de olhar para o seu dia a dia, e a partir disso transformar, reaprendendo a usar a criatividade. E também olhar a reciclagem como algo além de meramente separar, mas também como algo que permite criar.
Após a conclusão das oficinas, o MusCap irá realizar uma exposição com algumas das obras e intervenções produzidas ao longo do projeto, prevista para inaugurar no dia 8 de dezembro, seguindo até fevereiro na sala de exposições do museu, no bairro Rio Branco. A curadoria será de Christian de Lima e Raquel Brambilla.
ARTE A SERVIÇO DO PLANETA
Entre as mensagens e dizeres em prol do meio ambiente que circulam e às vezes viralizam na internet, uma delas diz: não existe planeta B. E é verdade. Afinal, o que é jogar fora, quando vivemos em um único planeta? Ajudar a despertar essa consciência quanto ao descarte, e consequentemente a importância da reciclagem, é um dos objetivos do projeto “Mulheres e Arte: A Trajetória do Recriar”, segundo explica Frei Celso Bordignon.
– Existe um erro no que se considera lixo. Muitas vezes são materiais descartados porque a gente pensa que não tem mais utilidade, mas tudo pode ter uma utilidade, inclusive para fazer arte. Reaproveitar vai muito além de separar plástico e papel e vender. Tudo é retirado da natureza, mas é jogado de volta de uma forma que a natureza tem dificuldade de digerir e acaba devolvendo, como tudo aquilo que jogamos no mar, por exemplo. Quando a gente pensa no mundo, não tem terreno do vizinho pra jogar fora. A gente joga tudo no nosso próprio terreno – adverte.
Educar para a ecologia e para a sustentabilidade é parte do que se entende por educação patrimonial. Porém, assim como essa disciplina, a importância do trabalho de catadores e recicladores é invisível para a sociedade. O que aumenta a responsabilidade de quem se compromete a jogar luz sobre esse ofício que tanto depende das nossas próprias ações e comportamento:
– Hoje em dia os artistas já utilizam muito mais materiais reaproveitados. Eu mesmo compro muito pouca coisa. Aqui no museu os funcionários trazem o que podem para que a gente possa aproveitar dentro do projeto, como material para fazer arte. É só uma gota d’água no oceano, mas já é uma gota d’água no oceano – diz Frei Celso.
Nos últimos anos, o MusCap tem feito diversos trabalhos que dão protagonismo a públicos invisibilizados, como idosos de casas asilares e crianças e adolescentes de casas lares. O projeto atual, além de promover uma aproximação física entre o museu e uma associação de reciclagem localizada em um bairro próximo – em especial as mulheres, que representam cerca de 60% da força de trabalho neste setor – também aproxima dois fazeres que dialogam, segundo o técnico em museologia do MusCap, Christian de Lima:
– Assim como a função que elas exercem no seu dia a dia nas esteiras, também é parte do nosso trabalho no museu aumentar a vida útil e dar um novo significado àquilo que alguém pensou que seria melhor jogar fora.