A premissa de não julgar um livro pela capa não faz o menor sentido em Ossos Açucarados, de Rafael Farina. De cara, o segundo livro de poesias do escritor radicado em Bento Gonçalves chama a atenção pelo primor gráfico, com convidativos desenhos de rostos serenos de ursos em lados opostos do papel.
A contemplação da beleza, no entanto, mantém-se à medida em que as páginas são viradas. A escrita sensível de Rafael – que flerta com o lirismo e a crônica – revela a potência dos sentimentos como quem faz um convite para o leitor mergulhar em si a cada verso. É preciso, pois, ter coragem para entrar nesse universo e desnudar o que se passa por dentro. Provocar um certo desconforto não é a função essencial da arte?
Tratadas sob várias nuances, as experiências afetivas do autor envolvem o leitor a partir do compartilhamento da contemplação dos pequenos momentos do cotidiano, de êxtase ou solidão. Rafael atém-se às singelezas quando fala de amor, seja através da descoberta das curvas do corpo da pessoa amada, seja pelas sensações térmicas das estações do ano que perpassam as janelas ou as paisagens e intenções que vão mudando à medida que o sentimento se transforma. É possível ver passagens sobre o auge amoroso, em que os mínimos detalhes merecem ser exaltados:
cla-ví-cu-la
[proparoxítona terminada
no colo dos ombros
dela]
Há, também, os desencontros melancólicos:
panelas, gatos e outras sucatas
(...)
fato é, que, repetindo-se a história,
outro solstício se aproxima e meus escritos
se afastarão de ti,
em margens cada vez mais estreitas – céu e firmamento darão bom dia
sem nenhuma fisionomia aceitável
compartilhando sozinhos
cada passo em falso.
Ao transitar pelas diferentes fases de um relacionamento – amor, carinho, tesão, raiva, angústia, dor –, Ossos Açucarados ganha um quê sinestésico: dá para sentir como os encontros são, de fato, em maior ou menor intensidade.
pé direito alto, com jardim de inverno
(...)
Teu corpo e meu corpo
descobrem-se uma vez por ano
nas trilhas de tardes arrastadas
colhendo a madrugada sedutora
A leitura percorre o caminho sugerido pelo título da obra, retirado de um dos poemas:
música incidental
flashes recorrem a um passado distante
como um espírito refugiado na mata
a correr da luz demasiada quente
para seus ossos açucarados
A mescla de rigidez com doçura soa, ao final, como um aviso: o amor, na medida, é transcendência.