O plantio introduzido de Pinus Elliotti na região é, há tempos, criticado. Os enormes pinheiros trazidos para cá de lugares como a Europa e a América do Norte, mais fortemente a partir dos anos 1960, foram capazes até mesmo de mudar a estética dos Campos de Cima da Serra. Uma das preocupações surgidas com relação a este tipo de vegetação é que abaixo dela nada cresce. Mas até nisso há controvérsia. Afinal, existe um pequeno tesouro da gastronomia que se desenvolve exatamente sob as palhas que caem dos pinus. É o cogumelo Porcini (no italiano, Porcino), um fungo cada vez mais festejado por chefs de cozinha e que tem despertado a curiosidade de muita gente que se interessa por descobrir novos sabores guiados pelo contato com a natureza.
— As florestas de pinus são um berço extraordinário para várias espécies de cogumelos. Alguns deles têm essa relação benéfica com a palhada. Essas palhas que impedem que outras plantas cresçam ali, principalmente gramíneas, são as mesmas que protegem a umidade e dão o ambiente propício para o cogumelo. Claro que existem malefícios, mas em contrapartida, eles (pinus) têm o poder de nos dar esses cogumelos de alto valor gastronômico — pondera Vagner Montezano, da Cogumelos da Terra, empresa caxiense voltada ao fornecimento de substratos orgânicos para o desenvolvimento do cultivo de cogumelos comestíveis.
Montezano é da área da Engenharia de Materiais e, ainda lá por 2002, prestou atenção nos cogumelos quando ouviu alguém dizer que eles seriam "a carne do futuro", por conta da alta concentração de proteína. Foram anos de pesquisa e preparo para adentrar nesse mercado e, desde 2015, ele vive exclusivamente dos cogumelos. Na Serra, hoje, há pelo menos 12 produtores (alguns apenas "colhedores) que trabalham com o fungo. Diferente de espécies como Shiitake ou Champignon de Paris, que podem ser cultivados indoor, o Porcini é um cogumelo selvagem, que surge na natureza sem a interferência humana. Ainda que alguns produtores se esforcem para reproduzir o ambiente mais benéfico possível para que o cogumelo apareça, o encontro com o Porcini tem sempre um pouquinho de sorte envolvida.
— Os cogumelos mais valorizados, aqueles ainda jovens que não abriram embaixo, ficam bem escondidinhos mesmo. Só com tempo para descobrir. Pela variação da superfície, a gente sabe. Mas até eu pegar esta manha, pisei em muito cogumelo. Faço uma relação com os big wavers, aqueles que catam as grandes ondas... Então, sempre a onda perfeita é a próxima e a gente procura o cogumelo perfeito, que vai ser sempre o próximo. Vamos atrás do mais bonito, com a morfologia mais legal, é uma atividade que te prende — explica Montezano.
Em cada conversa com amantes do universo da micologia (especialidade da biologia que estuda os fungos), há sempre uma história inesquecível do encontro — geralmente, totalmente inesperado — com o Porcini. Para o chef de cozinha Altemir Pessali, que mantém três restaurantes na Serra, a primeira vez teve doses gigantes de entusiasmo. Ele conta que já colhia cogumelos há algum tempo quando um dia encontrou uma espécie um pouco diferente, foi por volta de 2005. Olhando para o fungo, reconheceu as mesmas formas que estavam na capa de um livro sobre cogumelos que ele tinha em casa. Desconfiou que poderia ser um Porcini, mas resolveu conferir com um amigo italiano que morava em Garibaldi:
— Ele estava numa empilhadeira, e eu saí com aquela cesta cheia de cogumelos. Ele era um senhorzinho barrigudinho, baixinho. Não posso me esquecer das risadas que ele dava, da alegria que ele teve, e ele dizia assim para mim: "quello è il miglior fungo del mondo, il Porcino". Ele pegava, ele cheirava. E eu fiquei: "caramba". Desde então não parei mais a caçada.
O amigo italiano de Pessali realmente não estava errado em apontar o Porcini como o melhor cogumelo do mundo. Na verdade, ele está entre as três espécies consideradas mais saborosas. Mas pela abundância com que é encontrado na região — principalmente em cidades como São Francisco de Paula, Cambará do Sul, Jaquirana e Caxias do Sul — dá para afirmar que o Porcini é o rei dos cogumelos por aqui. Realeza que merece ser descoberta e reconhecida cada vez mais.
Criar memória
Trazidos para a Serra junto com a vegetação de Pinus Elliotti, não dá exatamente para reconhecer o Porcini e outros cogumelos que se desenvolvem na base dessas árvores como ingredientes tipicamente serranos. Mas, uma vez que esses pinheiros tomaram conta do horizonte interiorano de vários trechos da região, por que não valorizar esse saboroso fungo como algo "nosso"? De acordo com chef Marcos Livi, o que falta é introduzir os cogumelos na memória gastronômica da população.
— Imagina que, nas refeições do dia a dia, o pinhão faz parte, mas o cogumelo não. Se o pinhão está caindo de cima da araucária, o cogumelo está brotando no meio do campo e do pinus, mas por que não está fazendo parte do nosso dia a dia? Por desconhecimento, por falta de cultura, por desinformação — sugere ele, natural de São Francisco de Paula que radicou-se em São Paulo mas está voltando à Serra aos poucos por conta de seu trabalho à frente do Parador Hampel, na cidade natal.
Para desmistificar um pouco o caráter ainda gurmetizado que os cogumelos possuem, Livi tem organizado no Parador Hampel atividades que aliam informação e diversão ao redor da "caçada" de cogumelos na floresta. Até hoje, cerca de 30 turmas que passaram por lá e saíram sabendo muito mais sobre o universo dos incríveis Porcini e outros fungos silvestres.
— Se as pessoas sabem o que é, identificam, aprendem a colher e aprendem a cozinhar, vamos conseguir fechar a cadeia produtiva. Meu sonho é que, no futuro, na Serra gaúcha, a gente possa ter o cara na beira da estrada que vende pinhão e o cara que vende cogumelos, daí terei atingido meu objetivo. O cogumelo não é exclusivo da mesa do restaurante, ele é nosso, mas a gente não se apropriou dele — defende o chef.
O Parador Casa da Montanha, em Cambará do Sul, também organiza essas caçadas guiadas aos cogumelos como forma de disseminar a cultura dos fungos silvestres comestíveis. Atividade que parece novidade para alguns, mas também possui ligação histórica com a imigração italiana, marca identitária da região.
— A gente nada mais está fazendo do que trouxemos da nossa querida Itália. Para nós, tem uma década e meia que estamos fazendo, para eles, é algo bem mais antigo. Quando chegaram aqui na nossa região, eles não tinham muita coisa para comer. Minha mãe conta que colhiam cogumelos — comenta o chef Altemir Pessali, que participa das caçadas promovidas pelo Casa da Montanha.
Assim como os imigrantes, os cogumelos se adaptaram bem à Serra gaúcha, com a ajuda do clima e da terra. No caso dos fungos, encontraram aqui mais ou menos tudo que precisam para se desenvolver: além dos pinus, as temperaturas mais frias e com umidade relativa mais alta que os fazem "aflorar". Aquerenciados por aqui, o Porcini e outras espécies de fungos comestíveis têm tudo para se tornarem novos clássicos da nossa gastronomia.
— A gente tem que transformar isso em memória. Sabe, como a gente se relaciona com a polenta, com o galeto al primo canto, com o menarosto, que viraram patrimônios. O que quero é que o cogumelo vire memória — projeta Livi.
Extrativismo sustentável
A hashtag #extrativismosustentavel é amplamente usada no perfil Mirtileiros, que apresenta produtos colhidos e comercializados por um sítio na localidade de Rincão das Flores, próximo ao Apanhador. Lá, o casal Rodolfo da Silva Perucchin e Mariana Sirtoli descobriu pelo menos 25 espécies de fungos comestíveis. Entre eles, o rei dos cogumelos: Porcini. Pesquisador e amante da cultura fungi, Perucchin é entusiasta das caçadas aos cogumelos, mas pondera que a atividade precisa ser feita com muita responsabilidade.
— Não dá para sair coletando porque faz diferença na natureza. Se a coleta for predatória, agora pode ser que não, mas em alguns anos, nós vamos ver as consequências. O extrativismo tem que ser sustentável. Quando estou coletando, sempre deixo alguns cogumelos para trás, mesmo que falte no pedido de meus clientes, eu prefiro deixar lá e ter para as futuras estações, do que coletar tudo agora e não saber como vai ser no futuro — aponta.
Vagner Montezano, da Cogumelos da Terra, também tem a mesma preocupação. Ele até mesmo deixou de organizar atividades pautadas na procura dos cogumelos porque, de vez em quando, ficava sabendo de pessoas que visitavam propriedades sem autorização em busca dos fungos comestíveis.
— É perigoso, são locais afastados. Eu tenho medo da marginalização, de uma retirada sem critério. Eu primeiro vendo, para depois ir atrás dos cogumelos. Vejo pessoas colhendo por curiosidade, e acabam estragando e impedindo o ciclo normal. O cogumelo, o fungo, ele é muito importante para a natureza — justifica Montezano.
Mas, respeitando as particularidades que o extrativismo sustentável exige, a Serra tem um potencial incrível de ganho com os cogumelos. E não é só no setor gastronômico.
— É um potencial que vai muito além dos passeios em família para contemplar ou colher cogumelos. Os fungos oferecem ainda recursos para movimentar o turismo, abastecer restaurantes e gerar renda para agricultura familiar no extrativismo sustentável — aponta o biólogo Jeferson Timm, autor do livro Primavera Fungi, custeado de forma coletiva.
Timm explica que um dos principais fatores que dificultam o acesso a esta espécie é o fato de ela não poder ser cultivada. Os profissionais que se dedicam a isso, precisam saber identificar espécies e saber em que época e local elas ocorrem. Também é importante lembrar que muitos fungos são nocivos à saúde, o que torna perigosa a coleta por leigos.
— Aí entra o trabalho dos extrativistas. Ainda existem poucas pessoas desenvolvendo isso e se percebe que precisamos de algum tipo de regulação ou certificação, para que se garanta que os cogumelos silvestres que forem comercializados tenham controle de qualidade, procedência, correta identificação e higienização — alerta Timm.
Com tantos hectares de Pinus habitando a região, aliás, Timm acredita que a Serra poderia desenvolver o extrativismo dos cogumelos de uma forma muito mais concreta.
— Existe uma grande produção de alimentos negligenciada (estamos falando de toneladas), que poderia ser coletada e incluída no mercado ou nos pratos de restaurantes regionais — afirma o biólogo.
Queridinho da gastronomia
Como é coletado, geralmente, entre junho e agosto, o Porcini tem figurado em muitas receitas compartilhadas por chefs neste período de distanciamento social. Mas o sucesso do cogumelo não é de hoje. Desde que encontrou o primeiro exemplar do fungo, há cerca de 15 anos, o chef Altemir Pessali nunca mais tirou o ingrediente de suas criações gastronômicas. Na Trattoria Primo Camilo, seu restaurante mais antigo, integra um dos pratos mais importantes do cardápio: o pappardelle de funghi Porcini. O chef exalta o perfil versátil do cogumelo como uma de suas características mais positivas.
— Vai bem num risoto, numa massa, num omelete. Só tem que ter um cuidado, como é um produto extremamente selvagem, ele tem um sabor mais pronunciante, porque está num habitat onde consegue todas as propriedades que ele tem, pode puxar bastante para nozes, avelã, castanha. Se tu for colocar um molho vermelho, por exemplo, aí vai quebrar o gosto dele por causa da acidez do molho. Coentro e alecrim também não costumam combinar. Mas se tu colocar uma nata, aí é sensacional — ensina Pessali.
O Porcini é utilizado tanto quando mais jovem, com um sabor muito suave; quanto quando mais adulto, com sabor mais acentuado. O chef Marcos Livi, do Parador Hampel, define o cogumelo como um ingrediente multifacetado.
— Ele te serve de mil maneiras, inteiro, grelhado, recheado, seco, transformado em pó. E ainda ele é uma proteína vegetal, isso é incrível, porque pode substituir a carne tranquilamente — aponta.
Realmente, a alta concentração de proteína do Porcini e de muitos outros cogumelos faz com que ele seja uma ótima opção também para quem não consome carne. Foi assim que Rodolfo da Silva Perucchin e Mariana Sirtoli, do Mirtileiros, passaram a incluir mais fungos na alimentação, e acabaram se apaixonando por esse universo gastronômico. Mais do que estimular uma alimentação vegetariana, Rodolfo acredita que os cogumelos vão de encontro a uma tendência de diversificação do paladar.
— O consumo excessivo de carne não é algo benéfico, mas ninguém tem que ser impelido a não consumir. Acho que o cogumelo vem agregar para aquelas pessoas que querem ter um consumo mais consciente e também ter mais alimentos diferenciados no seu prato. O pessoal está nesta reeducação de não abandonar um estilo, mas agregar — diz Perucchin.
Das Panc aos Fanc
Mesmo antes de se tornar biólogo, Jeferson Timm já carregava os cogumelos como personagens de suas memórias de infância:
— Achava encantadores aqueles seres que surgiam e desapareciam rapidamente, chamados chapéu de cobra pela minha avó.
Pesquisador que trabalha há 10 anos com cursos e treinamentos na área dos fungos, ele também é autor do livro Primavera Fungi - Guia de Fungos do Sul do Brasil, que possui conteúdo em formato inédito no Brasil. Dedicado a democratizar as informações acerca do universo dos cogumelos, Timm tem percebido um aumento de interesse com relação ao assunto nos últimos tempos:
— Cada vez mais pessoas buscam reconexão com os instintos de "caçador coletor", existe um prazer enorme em aprender a reconhecer, coletar e usar elementos da natureza. A exemplo das Panc (plantas alimentícias não convencionais), que têm conquistado a gastronomia, queremos agora apresentar os Fanc (fungos alimentícios não convencionais) para as pessoas. Acredito que o advento das redes sociais potencializou a troca de informação e a disseminação destes conhecimentos, fazendo cada vez mais gente se interessar pelo tema.
:: Preço: o valor do Porcini varia bastante de região para região. Na Serra, um quilo do cogumelo pode ser encontrado a preços que vão de R$ 60 a R$ 100.
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