Na pequena sala que divide espaço com a cozinha na casa de Lisandra Pereira, os quatro menores dos seus oito filhos se entretém espalhados pelos dois sofás que circundam a televisão. A atenção dos pequenos se volta para a porta quando os passos na rua anunciam a chegada de um rapaz carregado com caixas e sacolas de mantimentos. Desde o início da pandemia da Covid-19, as doações entregues pelo voluntário Vinícius Poletto têm sido a salvação para a numerosa família do bairro Belo Horizonte, em Caxias do Sul.
– Trabalho como cuidadora de idosos e estou parada, porque o patrão também está em casa nestes dias e eu preciso cuidar das crianças. Como consegui garantir o auxílio (do Governo Federal para autônomos), combinamos que eu iria parar. Mas é apertado. Os extras que eu conseguia, como cuidadora no hospital, por exemplo, não posso mais. E é perigoso por causa das crianças, pois não quero trazer o vírus pra casa – conta Lisandra, 45, que é separada.
Além da cesta básica com arroz, feijão, farinha, café e outros mantimentos, as caixas e sacolas entregues por Vinícius representam a união de dezenas de pessoas desde o início da pandemia, algumas pertencentes a coletivos, outras engajadas de última hora e motivadas pela gravidade do vírus. A boa ação beneficia cerca de 200 famílias de alguns dos bairros mais carentes de Caxias, como Reolon, Santa Fé, Fátima e Planalto. Desde o início da ação, mais de três toneladas de frutas, verduras e legumes e 250 cestas básicas já foram entregues, em geral pessoas que já viviam em maior ou menor estado de vulnerabilidade, mas que na crise foram impactadas pela perda de trabalho.
– Muitas dessas famílias são sustentadas por autônomos, que trabalham com corte de grama, pintura, faxina, reciclagem, e estão sem serviço, alguns em situação desesperadora. Já passamos pela situação de entregar o alimento numa casa e as crianças chorarem de emoção ao ver a comida. Também nos impressiona pessoas que antes não precisavam e agora estão necessitadas. Elas nos dizem que vão receber o auxílio do Governo até o dia 5, mas que a fome não espera. Querem pagar quando tiverem o dinheiro, mas nós não cobramos. Se fazem questão, aceitamos que façam uma doação para comprarmos mais comida para outras pessoas – destaca Vinícius.
A rede solidária é formada por grupos de voluntários que já tinham alguma afinidade e optaram por trabalhar juntos para facilitar a logística durante a Covid-19, e assim atender mais e melhor. Inclui parcerias com mercados, fruteiras e produtores rurais que doam alimentos, produtos de limpeza e higiene, além de fraldas e máscaras. Responsável por buscar os itens junto aos doadores, Nara Dallas, proprietária de uma loja de roupas, conta que também tem sido fundamental as volumosas doações feitas por clientes das cinco unidades da loja.
– .Faço trabalho voluntário há mais de 30 anos e poucas vezes vi as pessoas tão mobilizadas. O volume de doações triplicou. – comenta Nara.
Os itens que faltam para completar as cestas são comprados com o dinheiro de móveis e eletrodomésticos vendidos pelo brique de dois parceiros, o casal Ronaldo Castro, 34, e Gabriela Neves, 21, que recolhe, restaura, revende e destina parte do valor para a causa. Semanas boas chegam a render R$ 600 para a causa.
– Alguns objetos que a gente recebe não têm valor comercial, são coisas que não serviriam para o nosso negócio. Mas aí tu percebes que a pessoa está doando com o coração, fazendo o que pode. Neste caso a gente tenta recuperar esses objetos e doar direto para as famílias necessitadas. Não participo das entregas, mas acompanho pelo grupo os relatos do Vinícius e me sinto muito grato de saber que o nosso trabalho pode ajudar a melhorar um pouco a vida de alguém – conta Ronaldo, que mantém o brique no bairro Esplanada.
Para incrementar as cestas básicas, Vinícius pediu à mãe, Jussara Poletto, 70, cortineira aposentada, para que colocasse a mão na massa, literalmente. A idosa, que vinha aproveitando os dias de quarentena para aprender a fazer crochê, deixou de lado as agulhas e colocou à disposição seus dotes culinários. Prepara cerca de vinte quilos de massa por semana, separados em saquinhos de 500g.
– É uma atividade que também faz os meus dias passarem mais rápido. Quando o Vinícius me conta que alguém elogiou, fico feliz. Mas é porque eu capricho. Uma massa boa tem que ter 10 ovos para cada quilo de farinha, não dois ou três – comenta Jussara, que também produz pães caseiros e pretende começar a fazer biscoitos nas próximas semanas.
Com os kits no porta-malas do Sandero vermelho, Vinícius é o encarregado pela entrega, normalmente feita à tarde, diariamente. Visita cerca de 10 casas por dia, às vezes para famílias que se encarregam da distribuição no bairro. Gosta de levar a ajuda a lugares onde normalmente o socorro não chega, como é o caso do loteamento Vila Ipê, uma das áreas mais pobres e violentas de Caxias. Em um terreno onde vivem seis famílias, a catadora Maria Helena Castanho, 55, e o faz-tudo João Juarez Macedo, 57. Juarez conta que vive de pequenos bicos e da venda de frutas e legumes da pequena horta nos fundos do terreno, mas que neste último mês, se não bastasse o vírus, a seca também foi outra inimiga.
- Estamos entregues nas mãos de Deus. Eu faço algum biscate, cato lenha no mato pra vender, faço cerca, cato papelão. Mas ninguém está comprando, nem contratando serviço, porque o dinheiro tá curto. Época de colheita da macela eu sempre fazia um dinheirinho vendendo da porta da igreja. Esse ano a Sexta-Feira Santa foi de chorar, não tinha ninguém na rua –conta.
Com pedido de auxílio emergencial do Governo Federal ainda sob análise, o que garante a comida na mesa do casal e de seus quatro filhos e seis netos são, basicamente, as doações.
– É uma benção. Não sei o que seria de nós se não fosse as coisas que o Vini traz – diz Maria Helena.
1,5 mil máscaras por semana para o hospital
Outras duas frentes do grupo são a produção sabão artesanal e de máscaras caseiras para distribuição gratuita a funcionários, pacientes e visitantes do Hospital do Círculo, em Caxias do Sul. A cada semana. são entregues 1,5 mil unidades feitas em algodão, helanca ou TNT pela costureira Julieta Mascarello, 53. O material é entregue pelo próprio hospital e a costureira não cobra nada pela mão de obra.
Intercalando a produção solidária com o próprio trabalho com conserto de roupas e produção de máscaras para vender, Julieta dedica um ou dois dias da semana exclusivamente para o material a ser entregue ao hospital. Um trabalho, que segundo ela, é o mínimo que poderia fazer num momento que exige doação de todos:
– Na situação atual a gente tem que se perguntar no que a gente pode ser útil. Se é uma época difícil, vamos fazer algo que dê esperança e torne menos difícil. Eu tenho o dom de costurar, outra tem o dom de cozinhar. Cada um pode e precisa fazer um pouco – comenta Julieta.
Responsáveis pelo sabão caseiro, a instrutora de autoescola Simone de Lima e Silva, 35, e o mecânico Paulo da Conceição, 34, viram a notícia sobre uma iniciativa semelhante em outra cidade e decidiu experimentar. Com uma mistura de água, óleo de cozinha
reaproveitado e soda cáustica, o casal iniciou a produção na semana passada.
– A ideia é distribuir os insumos para as próprias famílias fazerem o seu sabão em casa e distribuírem as barras para quem precisar na comunidade. É prático, sustentável e pode representar uma economia importante nesse momento – explica Simone.
Antes dos sabões, na última Páscoa o casal produziu quase 100 ovos de chocolate para distribuir às famílias carentes, com o chocolate e as forminhas recebidos através de doações. Devido às recomendações, as entregas foram feitas com máscaras e respeitando a distância segura de um metro
– Senti falta de poder abraçar, de tocar as pessoas. Elas se sentem agradecidas por receber e nós por poder entregar, mas não poder consumar isso com um abraço é estranho – lamenta Simone.
Como ajudar
Interessados em ajudar o grupo com dinheiro para a compra de cestas básicas podem fazê-lo sem sair de casa. Basta acessar a vaquinha na plataforma digital Apoia.se. Cada cesta básica custa R$ 55. Também é possível entrar em contato pelo telefone/WhatsApp (54) 981113733, com Vinícius.
Para acompanhar e saber mais sobre o trabalho do grupo, basta segui-los nas redes sociais: @coletivo_social_elo (Instagram) e facebook.com/ELOcoletivoso-cial