Palavra que até então costumávamos associar aos filmes de ficção científica, quarentena passou a fazer parte do vocabulário cotidiano brasileiro na última semana. Como tudo que é novo, experimentar o distanciamento e o isolamento social provocado pela pandemia da Covid-19, o Coronavírus, nos fez aprender. Reaprendemos, assim, a viver como sociedade. E compreendemos que, por sermos interdependentes, nossas ações pelo planeta, bem como pelo nosso vizinho, invariavelmente refletem sobre nós.
Quem entendeu a gravidade do momento logo despertou para a importância ainda maior da empatia e solidariedade. Conforme os índices alarmantes trazidos pela mídia do poder devastador do vírus faz crescer o medo a cada dia, torna mais urgente a necessidade de ajudar os mais fragilizados: no caso, pobres e idosos. Em Caxias do Sul, o momento dramático despertou em inúmeras pessoas a vontade e a urgência de minimizar o drama alheio, prestando favores aparentemente corriqueiros, mas cuja diferença talvez só possa ser mensurada por gerações que ainda nem nasceram.
Colocar-se à disposição não foi exatamente uma novidade para a professora de matemática recém aposentada Regina Vanni. Ela e outras 15 vizinhas do mesmo prédio mantêm há alguns anos um grupo de ajuda mútua para questões do dia a dia, desde algo que faltou para cozinhar o jantar ou uma ferramenta para um conserto, até uma eventual carona. A pandemia fez reforçar o vínculo entre as vizinhas. Com isso, o grupo virou um espaço para trocas de informações, especialmente sobre os cuidados necessários para a prevenção, e também de acolhimento, literalmente.
- Algumas mães ainda não puderam parar de trabalhar e não podem ficar com as crianças quando elas estão sem aula. Como estou aposentada, me prontifiquei a ficar com a filha de sete anos de uma vizinha. A querida estava até de máscara. Como eu já não tenho mais filhos pequenos, foi legal ter tido contato com a criança, ao mesmo tempo podendo ajudar uma amiga - conta Regina.
Sobre a repercussão da pandemia no grupo, a professora comenta que as reações ainda são de apreensão, mas também de tentativa de manter a calma e de reforçar a necessidade do recolhimento neste período. No final desta semana, a família de Regina se reuniu para iniciar a quarentena no apartamento em que o casal vive na área central.
- Vamos ficar mais por casa. Meu marido, que é representante comercial, voltou da última viagem, buscou nossa filha, que mora em Porto Alegre, e agora não vamos sair mais. É o mínimo que podemos fazer por nós e por todos.
Compras e vacinas a domicílio
Sob recomendações de isolamento mais severas que as dadas a jovens e adultos, por estarem no grupo de maior risco de contágio,os idosos acabam por se expor a riscos maiores quando têm de ir à farmácia repor seus medicamentos ou ao supermercado comprar suprimentos. Na onda solidária da pandemia, viralizaram nas redes sociais imagens de bilhetes deixados em elevadores de prédios, por vizinhos dispostos a fazer as compras para os velhinhos, a fim destes evitarem o deslocamento.
Iniciativa semelhante a da enfermeira caxiense Sara Reis. Atendendo uma maioria de idosos há mais de 26 anos, conhece a dificuldade que esse grupo enfrenta por suas limitações, sejam naturais devido ao avanço da idade, ou decorrentes de alguma doença. Nesta última semana, após ter atendido a um paciente em sua casa, ofereceu-se para ir comprar algumas coisas que ele necessitava. Teve então a ideia de postar publicamente, no Facebook, colocando-se à disposição para repetir o gesto solidário a quem quer que precisasse.
- Atualmente, trabalho com drenagem linfática e meus pacientes são idosos, que muitas vezes não têm os filhos ou qualquer parente morando na cidade. Vejo diariamente a ansiedade e a dificuldade deles de realizarem suas tarefas fora de casa. Daí tive a ideia de me colocar à disposição neste momento. Copiei o texto de uma amiga, com a intenção de propagar essa ideia e motivar mais gente a se sensibilizar - conta a enfermeira.
Na última sexta-feira, já devido à repercussão positiva do post, um conhecido pediu a Sara se ela poderia aplicar vacinas contra o vírus Influenza em dois casais de idosos da sua família, que normalmente seriam atendidos pelo plano de saúde, mas que não tinham como se deslocar devido ao isolamento. Quantas curtidas ou aplausos na janela uma atitude assim merece?
Cuidado com toque artesanal
Também enfermeira com larga experiência, hoje aposentada, a caxiense Rosa Capelaro Andreazza anteviu a dimensão que a Covid-19 poderia atingir no Brasil ainda antes da enxurrada de casos suspeitos e confirmados da última semana. Pensando numa forma de ajudar, lembrou dos tempos em que trabalhava no Hospital Pompéia, nos anos 1980, e ajudava a confeccionar, entre outras peças, máscaras feitas com tecido, linha e cadarço.
Foi por coincidência que, naquele mesmo fim de semana, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, orientou que a população utilizasse máscaras de tecido, a fim de evitar que as farmácias ficassem desabastecidas. Foi então que Rosa recrutou a irmã, Zélia, costureira, para iniciar a produção de máscaras caseiras a fim de doá-las.
- Como profissional da saúde, sempre penso em prevenção. Isso não é diferente com a Covid-19, na medida que o que pode frear a disseminação do vírus são medidas de contenção. Uma das primeiras notícias que li sobre o assunto foi a de que em outros países estava faltando materiais, como luvas e máscaras - conta Rosa.
Conforme as primeiras unidades ficaram prontas, Rosa publicou fotos nas suas redes sociais. A repercussão foi instantânea, com amigas de outros estados e até uma que mora no Canadá pedindo ajuda para elaborar as suas próprias máscaras. As primeiras peças foram doadas a uma gestante e sua família, na tarde de sexta-feira, que recebeu a recomendação da médica para que usasse a máscara.
- Neste momento temos que mirar em exemplos de cooperação e a quebra do individualismo, que infelizmente permeia a sociedade. Hoje a humanidade está se igualando, aprendendo que não importa raça, credo ou classe social. O que vamos tirar de aprendizado dessa pandemia é essa reavaliação de valores e a necessidade de doação em prol do outro.
A enfermeira deu ao projeto o nome Máscaras Solidárias. Comenta que uma rede de apoio já se formou para doar linha, tecido e cadarço, além de favorecer uma logística que facilite as doações. E, se mais gente de talento e bom coração quiser ajudar na produção, todos serão bem-vindos (cada um em sua casa, claro).
Mãos amigas à obra
Com o anúncio feito pela Fundação de Assistência Social (FAS) de que, a partir de segunda-feira, os Pavilhões da Festa da Uva serão disponibilizados como abrigo temporário para moradores de rua de Caxias do Sul, funcionários de duas casas de passagem de Caxias, a São Miguel e a São Francisco de Assis, ambas vinculadas ao Projeto Mão Amiga, se mobilizaram para fazer a sua parte.
A força-tarefa irá ajudar na lavagem das roupas da população de rua durante o período de confinamento. Serão disponibilizadas cinco máquinas lavadoras industriais, que serão operadas por um time de seis pessoas em cada casa. A coordenadora da Casa São Miguel, Adriana Debastiani, comenta que muitos voluntários também se dispuseram a doar colchões e roupas de cama para os que serão acolhidos nos Pavilhões, conforme haja necessidade.
- Ao sabermos da ação, nossa rede se comoveu e muitos pediram para ajudar de alguma forma. Iremos atuar em parceria com a FAS, que irá ajudar na compra dos produtos para a lavagem das roupas. Será uma força-tarefa visando atender essa parcela tão necessitada quanto esquecida da população, que depende muito do esforço de qualquer um que possa interceder por ela - destaca Adriana.
A coordenadora comenta que as duas casas estão com o serviço mantido, porém operando na capacidade máxima, de 40 pessoas, em cada uma. Logo, não há possibilidade de realizar novos acolhimentos no período de quarentena. Adriana explica que as equipes têm redobrado as ações de higiene no local, ao mesmo tempo em que têm sido fundamental a colaboração dos próprios usuários:
- Todos estão proibidos de sair, mesmo aqueles que trabalham como catadores. Chegamos a abrir a possibilidade deles saírem sem poder voltar durante esse período, mas todos optaram por permanecer. Estamos fazendo as refeições por turnos, para evitar a maior aglomeração, nossos educadores reforçaram a vigilância quanto à higiene e aceleramos as trocas de roupas de cama e das vestimentas pessoais. Ao mesmo tempo, estamos repassando a eles todas as informações necessárias, mas é importante frisar que eles estão bem conscientes.
ENTREVISTA
“As pessoas ainda estão na fase inicial deste confronto: a negação”.
A primeira pandemia a ser experimentada por toda uma geração de brasileiros, embora assustadora, é uma rica oportunidade para recriar vínculos, fazer rever valores e despertar para a coletividade em tempos de individualismo aflorado. Para quem se dedica a estudar o comportamento humano e faz dele seu objeto de trabalho é um rico campo de reflexão. O Almanaque conversou com a psicóloga caxiense Patrícia Luiza Prigol, para tentar entender melhor diversos aspectos sociais que envolvem o Covid-19.
Confira a seguir a entrevista:
Almanaque: Desde o início da pandemia do Covid-19, percebe-se uma rede de apoio aos mais fragilizados, especialmente pobres e idosos. Por que as pessoas sentem essa urgência nessa hora? O que falta para sermos mais generosos e empáticos o tempo todo?
Patrícia Prigol: Na pandemia do Covid-19, a morte deixa de ser uma ideia e passa a se tornar uma realidade. O coronavírus é uma ameaça à integridade das pessoas. Se antes tínhamos a ideia da morte e a projetávamos num tempo futuro, mesmo que de curto prazo devido à velhice e/ou doenças pré-existentes, a pandemia coloca a morte no tempo presente. E quando as pessoas se deparam com a morte, percebem que tudo o que possuem perde o sentido. O COVID-19 rouba qualquer fantasia de onipotência. Ou seja: diante de uma pandemia como esta, ficamos nus, de joelhos, completamente despidos de recursos. Nisto, ricos e pobres ficam nivelados diante da iminência da morte. E isso nos humaniza. A dor sentida e reconhecida no outro nos devolve para a nossa realidade: somos, sim, seres humanos vulneráveis e, portanto, somos iguais.
Ao mesmo tempo, parece que os ânimos ficam à flor da pele. Assumimos uma postura de juízes do comportamento alheio. Como ser mais compreensivo, na medida que parece que cada pessoa tem seu tempo para aprender a conviver com uma situação inédita como essa?
Todos nós possuímos uma estrutura de personalidade e caráter formada. Em momentos de crise maior ou de ameaça a nossa integridade, cada um de nós irá usar os seus próprios recursos internos e estes recursos compõem o rol das características de pensamento e linguagem, as características da nossa personalidade. Pessoas que são mais críticas, que possuem uma personalidade que revela traços marcantes de uma neurose obsessiva, por exemplo, tendem a julgar mais na tentativa de atingir uma proteção fantasiosa, pois geralmente ficam nos extremos onde os equívocos de interpretação ocorrem. Nos últimos tempos, nossa sociedade foi estimulada fortemente para a polarização. Ficamos divididos como se estivéssemos numa guerra ou disputa pela verdade, mesmo que soubéssemos que a verdade é relativa. Creio que o COVID-19 fará o trabalho que nós não conseguimos fazer num estado democrático: o coronavÍrus está acelerando o processo de resgate dos valores humanos e de um senso marcante de coletividade, onde para que eu sobreviva terei de cuidar de mim e do outro também. Vivemos nos últimos tempos com a defesa psicológica ataque/fuga. O COVID-19 não nos dá esse tempo de disputa. Vamos nos tornar mais empáticos na marra.
A pessoa que tem em casa pessoas do grupo de risco, no caso idosos ou portadores de determinadas doenças. Como ela deva ajudar a cuidar desse ente querido e de si mesma do ponto de vista psicológico?
Todos os cuidados preventivos que incluem assepsia (a nossa, a do outro e do ambiente) precisam ser assegurados para ajudar o grupo familiar na diminuição dos estressores externos. Além disso, transformar o abraço, o beijo, o toque em palavras de carinho, atenção e afeto, contribui enormemente para o enfrentamento da pandemia. Os laços afetivos, os vínculos familiares podem ficar ainda mais fortalecidos na medida em que todos se voltam para a mesma questão: os cuidados pessoais e o cuidar do outro também. É um momento de grande tensão, mas de grande aprendizado e superação de dilemas familiares. Será um momento de enfrentamento também das nossas questões internas e dos conflitos nas relações, pois estaremos com muito mais tempo para isto. Os cuidados tomados, sejam externos ou internos, alimentam a alma e fortalecem os recursos que cada pessoa dispõe internamente.
Como tu avalias a atitude de estocar o máximo de mantimentos em casa no período de pandemia, apesar dos avisos de que isso acarreta um preço maior para o consumidor que, muitas vezes, não tem condições de comprar em maior quantidade? Falta empatia?
Esta é uma questão muito delicada, pois estamos diante da expressão máxima de todos os traços da nossa personalidade e do nosso caráter, além dos transtornos mentais. Ou seja, cada pessoa reage conforme suas condições psíquicas. Mas é bom lembrar que este grupo que agiu desta maneira, deflagrou um comportamento paranoico, hipervalorizando os riscos do coronavírus nesta fase inicial de prevenção. Esta hipersensibilização levou estas pessoas a desenvolverem esse comportamento paranoico dentro de uma espécie de histeria coletiva. Não se trata de julgar essas pessoas, mas avaliar que na sociedade temos várias personalidades e o perfil psicodinâmico de cada pessoa determinará seu comportamento. E é por isso que precisamos trabalhar para orientar as pessoas, não apenas informá-las, mas orientá-las para que sintam-se mais seguras ou parte de uma rede de apoio e amparo.
A pessoa que sabe das recomendações para evitar a maior disseminação do vírus, mas que ainda assim as ignora e segue com seus velhos hábitos, é possível dizer o que a faz ter esse comportamento?
Sim. Geralmente são os mecanismos defensivos que a pessoa utiliza. Neste caso, o mecanismo psicológico de defesa é a negação da realidade. Algumas pessoas demoram mais para enfrentar melhor a realidade. O jeito que elas enfrentam é negando-a. Se eu nego o problema, fantasiosamente ele deixa de existir. Todos nós usamos de defesas psicológicas para proteção do nosso aparelho psíquico diante de traumas e de uma grande ameaça à nossa integridade. Estas pessoas negam a realidade, mas daqui a pouco irão enfrentá-la de outro jeito. É bom lembrar que para nós, brasileiros, esta pandemia é o nosso primeiro grande enfrentamento. Não somos um país que está adaptado às guerras ou confrontos que ocasionam mortes em massa. Tudo é novo neste sentido. As pessoas ainda estão na fase inicial deste confronto: a negação. Parece que existem dois movimentos ou dois comportamentos marcados em nossa sociedade nesta pandemia: a negação ou a paranoia. Nem um, nem o outro irá nos ajudar neste momento. É preciso manter o equilíbrio para melhor utilizarmos nossos recursos.
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