Não é novidade que o mercado editorial está em crise e que os hábitos de leitura mudaram nos últimos anos – em grande parte devido às transformações tecnológicas. Os livros não estão mais exclusivamente no papel, ocupando também as telas de computadores e smartphones. Da mesma forma, a criação literária parece não caber somente aos escritores – basta acesso à internet para soltar a imaginação em blogs ou redes sociais.
Este cenário, descrito exaustivamente por analistas como um ponto sem retorno, é o pano de fundo do longa francês Vidas Duplas, estreia desta semana na Sala de Cinema Ulysses Geremia, no Centro de Cultura Ordovás. Dirigido por Olivier Assayas, ex-crítico de cinema que recentemente assinou Personal Shopper (2016) e Acima das Nuvens (2014), o filme foca na geração que sofre os efeitos colaterais de viver asfixiada entre pais analógicos e filhos nativos digitais.
A trama parte da relação de amizade entre Alain (Guillaume Canet), um editor pressionado pelas mudanças do mundo digital, e Léonard (Vincent Macaigne), um escritor idealista que transforma as próprias vivências em romances. Não bastasse o mercado literário, ambos vivem crises em seus casamentos.
Aqui entram Selena (Juliette Binoche), atriz que interpreta uma agente policial numa série de sucesso, e Valérie (Nora Hamzawi), assessora de um político de esquerda. Soma-se ao quarteto a incansável Laure (Christa Theret), contratada para comandar a transição digital da editora.
Embora os protagonistas soem um tanto caricatos à primeira vista, na medida em que a projeção avança o público depara com camadas mais profundas – e consequentemente menos publicáveis. Isso se manifesta tanto nos episódios de infidelidade quanto no aparente cansaço frente à realidade. É como se os personagens quisessem se manter iguais mesmo diante de um mundo que se desmancha ao redor.
Cabe aqui uma ressalva: os debates de tom intelectualizado ao longo do filme podem parecer cansativos, principalmente se o espectador não estiver acostumado à cinematografia francesa. No entanto, os diálogos são recheados de sarcasmo, trazendo à tona provocações que por vezes passam batidas quando o assunto é consumo de arte na era da internet.
Até porque, com a promessa de democratização dos conteúdos trazida pela hiperconexão, muitas pessoas resistem em pagar por livros ou ingressos de cinema (os sites para download gratuito de filmes são testemunhas desse comportamento), esquecendo que existe uma cadeia profissional por trás de cada obra. Em contrapartida, parece não haver a mesma resistência em investir fatias maiores do orçamento pessoal em computadores ou pacotes de dados. Essa dualidade salta aos olhos em boa parte do roteiro assinado por Assayas.
Do ponto de vista estético, os tons pasteis contribuem para a atmosfera intimista da narrativa. Outro acerto é a presença constante de aparelhos eletrônicos em cena. Em mais de um momento, a câmera mostra os protagonistas colocando celulares ou tablets para carregar, o que casa perfeitamente com a temática.
Outro mérito fica por conta da sintonia do elenco, que consegue suavizar características que poderiam ficar caricatas se interpretadas sem o devido cuidado. Juliette Binoche, que já faturou o Oscar de Atriz Coadjuvante por O Paciente Inglês (1997), pode não estar na melhor performance da carreira, mas consegue cativar o público quando os dilemas de sua personagem adquirem um tom mais denso.
Em cartaz até dia 16, com sessões de quinta a domingo, Vidas Duplas cumpre o papel de chamar à reflexão ou de, pelo menos, deixar uma pulga atrás da orelha sobre como nos relacionamos com os livros. E também com o cinema.
PROGRAME-SE
:: O que: drama francês Vidas Duplas, de Olivier Assayas.
:: Quando: estreia nesta quinta (6) e fica em cartaz até dia 16, com sessões de quinta a domingo, às 19h30min.
:: Onde: Sala de Cinema Ulysses Geremia, no Centro de Cultura Ordovás (Rua Luiz Antunes, 312).
:: Quanto: ingressos a R$ 10 (estudantes, idosos e servidores municipais pagam meia).
:: Duração: 108 minutos.
:: Classificação: 14 anos.