CORREÇÃO: a tradicional festa de Iemanjá é celebrada neste domingo, dia 2 de fevereiro, e não neste sábado. A informação incorreta permaneceu publicada entre 17h20min e 20h20min.
Nas religiões afro-brasileiras, 2020 é o ano regido por Xapanã, orixá da terra e guardião dos humildes e doentes, bem como todo janeiro é o mês de Oxóssi, pai das matas e protetor dos caçadores. Na vitrine de uma das mais tradicionais lojas dedicadas aos artigos das religiões de matriz africana em Caxias do Sul, porém, desde o começo do ano as cores e os temas de Xapanã e Oxóssi concorrem com o azul do mais popular dos orixás, celebrado logo no início de fevereiro. Neste domingo, milhões de brasileiros reverenciam Iemanjá, a rainha do mar, protetora de todas as cabeças e deusa da fertilidade.
A tradicional adoração a Iemanjá é feita na beira da praia, com oferendas jogadas ao mar ou depositadas na areia. Dona de beleza e fascínio incomparáveis, a vaidosa deusa cujo nome é a junção das palavras do iorubá “yèyé omo ejá” (a “mãe cujos filhos são peixes”) recebe de seus devotos velas e flores, além de espelhos, batons, pentes, perfumes, leques e bijuterias. Mimos de quem pede em troca proteção, saúde e prosperidade da guardiã das águas salgadas, numa identificação que muitas vezes transcende a religião.
– As três mães, Iemanjá, Oxum e Iansã, são os orixás mais procurados na loja. Iemanjá é quem atrai também as pessoas que não são da religião, mas que se identificam por conta do sincretismo com Nossa Senhora (da Glória, da Conceição ou dos Navegantes, dependendo da região do país). Especialmente nesta época, clientes chegam atrás de produtos para fazer suas oferendas, muitas vezes sem saber o que ela gosta de receber. Por isso já deixamos alguns kits prontos, já dentro do barquinho em miniatura. Nesta época chega a sair 100 kits por semana – conta Leandro Cachorowski, gerente da Ervanária São Carlos, no centro de Caxias do Sul.
A popularidade de Iemanjá tem muito a ver com o sincretismo religioso, que a associa a Nossa Senhora dos Navegantes, também símbolo de mãe protetora para os católicos. Como a adoração aos deuses africanos chegou ao Brasil pelos escravos, a perseguição religiosa fez com que os negros, proibidos de adorar seus orixás, deuses que regem as forças da natureza, disfarçassem sua crença manifestando devoção aos santos católicos, criando correspondências (Ogum, por exemplo, é sincretizado com São Jorge). Também por conta da mistura de crenças, Iemanjá é representada tanto com a pele negra, bem como com a pele branca e cabelos lisos, numa versão mais europeia (não há incômodo, embora não se possa esquecer a origem negra dos orixás). Com seios fartos para alimentar seus muitos filhos, ora é vista como sereia, ora como mulher que traja um longo vestido azul.
Filhos da sereia
É no terreiro, através do jogo dos búzios, que o orixá grita ao pai ou mãe de santo que aquele que está diante de si é seu filho espiritual. Foi numa consulta com uma mãe de santo em Porto Alegre, há quase três décadas, que Patrícia Loss descobriu ser filha de Iemanjá. Daí para a advogada se tornar a ialorixá (ou mãe de santo) Patrícia de Iemanjá foram muitos anos e uma profunda transformação. Proprietária da casa Ondas de Luz, no bairro Desvio Rizzo, onde joga búzios e oferece consultas e trabalhos de umbanda e de nação Cabinda (religião afro originária de Angola, que no Brasil é mais comum no Rio Grande do Sul), Patrícia diz ter se identificado com um viés amoroso do africanismo que não conhecia, mas que representou um divisor de águas.
– Estava no cursinho para entrar na faculdade e lá tinha uma colega cuja irmã era mãe de santo, que me despertou a curiosidade de conhecer a religião. No terreiro conheci um lado fascinante, que é a beleza das roupas, a fartura da comida, o toque dos tambores, as danças. Mas, mais do que isso, senti um chamado de amor. Foi a forma de ver como minha primeira mãe-de-santo, de Oxalá, tinha uma maneira de acolher muito forte. Todo filho de Iemanjá tem em sua essência o senso de proteção, coisa de mãe mesmo. O cuidado, o amor, querer que todos estejam protegidos – relata a mãe de santo, também mãe de duas filhas biológicas.
Patrícia, cujas duas filhas biológicas são simpatizantes do africanismo, mas não praticantes, ressalta que as religiões como a umbanda, o candomblé e a nação ainda sofrem preconceito na sociedade, fruto principalmente do desconhecimento, mas também da discriminação contra pobres e negros, que deram origem e são maioria entre os praticantes.
– O preconceito ocorre com os filhos na escola, na entrevista de emprego, com aquele que trabalha, mas precisa esconder suas vestes, suas guias e rituais. Existe uma discriminação por ser uma religião que veio do pobre, do preto, e que por isso é marginalizada. Por nunca ter sido permitido ao afro ter uma estrutura comparável a da igreja católica, passa uma ideia de desorganização, que aumenta a desconfiança. De outro lado existe o desconhecimento de quem trata a religião como uma fórmula mágica para alcançar coisas, sem respeitar a história que está por trás. O orixá pode aliviar teu coração, te trazer crescimento, felicidade, mas isso é um processo que te exige estar aberto. Axé (palavra da umbanda que significa a energia do santo) não é uma moeda de troca – destaca.
Ao falar sobre a influência de Iemanjá em sua vida, Patrícia não contém a emoção. Limpando as lágrimas dos olhos e com a voz embargada, descreve o orixá como a soberana da sua vida:
– Iemanjá me ergue, me levanta, é a força no momento da angústia, é o crescimento, é o acolhimento de mãe. Meu quarto de santo (onde fica o altar dedicado ao orixá) é a estrutura maior que eu tenho, minha força motriz, é onde meu coração está colocado, é onde eu pulso.
Procissão ao litoral
Há 20 anos, Luiz Carlos de Mello, também conhecido como o babalorixá (pai de santo) Carlos de Iemanjá, 51, organiza caravanas que saem de Caxias do Sul rumo ao litoral para participar da procissão de Iemanjá, no seu dia ou em uma data próxima. Neste ano, a excursão sairá no próximo sábado (dia 7) e irá contar com três ônibus, além de participantes que vão de carro.
Contando com o público que já está no litoral, as homenagens em figueirinha, praia de Arroio do Sal, costumam reunir até 700 pessoas, em sua maioria caxienses. Se o número parece alto, vale destacar que Caxias do Sul conta com aproximadamente 800 terreiros. Se for feita uma média de 30 participantes para cada casa, chega-se a algo em torno de 24 mil praticantes das religiões afro na cidade.
Foi em um desses terreiros que Carlos, que é natural de Santos e mora em Caxias há mais de 30 anos, se descobriu como filho de Iemanjá. O encontro com a religião veio como uma cura num momento de dificuldade, período em que flertou com a depressão:
– Entrei na religião por uma dor que aos poucos se transformou em amor. Minha mãe de santo me mostrou o lado bonito da religião, e é esse lado que tento praticar e mostrar. Em primeiro lugar, minha função é ensinar às pessoas que me procuram o que é a religião e se isso serve a elas para além de alguma solução fácil que elas estejam procurando.
Pai espiritual de 48 filhos de santo, Carlos mantém seu terreiro no bairro Kayser, em Caxias. Atribui a grande popularidade de Iemanjá o fato de vivermos num país tropical, em que muitas pessoas se identificam com o imaginário do mar e seus significados. Considera o sincretismo positivo:
– O sentimento é o mesmo e deve servir para unir. Iemanjá é a dona do cérebro, do ventre, é ela quem nos coloca para dormir, ela que nos dá de beber e de comer, nos oferece seu aconchego e a força para seguir em frente.
Questão ambiental
Entre as polêmicas que envolvem as religiões de matriz africana estão o sacrifício de animais nos rituais (prática considerada constitucional em 2019 pelo Supremo Tribunal Federal), e também os danos ao meio ambiente provocados por oferendas a céu aberto, popularmente conhecidas como despachos. No caso de Iemanjá, os já citados presentes ofertados na praia a cada dia 2 de fevereiro são uma preocupação também para quem leva a sério a religião e não quer atrelá-la ao descuido com o meio ambiente.
Embora a sujeira no dia seguinte ainda seja uma realidade incômoda, tanto Patrícia quanto Carlos destacam que essa consciência tem crescido a cada ano entre os participantes das homenagens na praia. Nos barcos em miniatura depositados no mar, os organizadores das oferendas estimulam que sejam colocados apenas materiais biodegradáveis. Outras oferendas, como os espelhos ou os batons, são deixadas na areia para serem recolhidas pelos organizadores das excursões ou por equipes das prefeituras.
– Optamos por montar um barco ecológico, com canjica, perfume derramado sem o frasco, sabonete. Coisas que se decomponham mais facilmente e não provoquem danos à natureza, pois seria uma ofensa a Iemanjá. Aquilo que é plástico ou outro material que demore para se decompor é deixado na beira da praia para ser recolhido no dia seguinte – comenta Carlos.
Patrícia, que costuma fazer as oferendas no litoral catarinense, compartilha da preocupação:
– Aqui em casa levamos apenas perfumes, velas e flores. Adereços que vão fazer lixo, como espelhos ou plásticos nós colocamos em um baú que fica de presente no quarto de santo.
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