Diante de um liquidificador ou de um aspirador de pó ligado, a maioria das crianças reage com medo ou aversão ao ruído alto e desconhecido. Marco Antônio Massoni ainda ensaiava seus primeiros passos quando subiu numa cadeira para assistir, vidrado, ao funcionamento do liquidificador da mãe, Sirley, 51. Foi o primeiro indício de que se tratava de uma criança diferente, o que veio a se confirmar com o passar dos primeiros anos da vida do menino. Antes dos cinco anos, Marco Antônio já havia desmontado e remontado todos os utensílios domésticos da família. Recordando a história ao lado da mãe, o jovem, que hoje tem 10 anos e acaba de concluir seu primeiro curso de impressão 3D, comenta sobre o funcionamento do liquidificador como quem ensina a amarrar um cadarço.
– O motor tem uma bobina eletromagnética e um imã com várias bobinas em volta. Quando tu acionas o liquidificador, vai ligando uma de cada vez e vai começar a girar. É assim que funciona – resume.
Até descobrir que o filho era superdotado, Sirley e o marido, Flávio Massoni, 55, tiveram de percorrer um longo caminho e lidar com situações embaraçosas, em casa ou na creche. A começar pela desconfiança de amigos, que viam como negligência o fato de que o seu filho ligava e desligava aparelhos na tomada. Na creche, não se interessava por interagir com outras crianças. Preferia estar entre os adultos. A investigação passou por pediatras, psicólogos e psiquiatras, em consultas em Caxias do Sul e em Porto Alegre. Foi a pediatra Mara Mendes a primeira a identificar no menino os traços da superdotação, comprovada a partir de entrevistas, jogos lúdicos e observações por parte de médicos, psicólogos e educadores especializados (avaliação multidisciplinar que substituiu o antigo teste de Q.I.).
– O mais comum nestes casos é que a família relute em aceitar que o filho é diferente. Por desconhecimento, muitas vezes essas crianças são tratadas como hiperativas, o que é bem diferente. Aos dois anos, o Marco Antônio tinha o comportamento de uma de 10 anos. Hoje, aos 10, é como um jovem de 20 anos. A família precisa entender que, por conta disso, ele não vai se interessar por fazer coisas comuns a todas as crianças. Somos nós, os adultos, que não estamos preparados para esse tipo de criança. O casal sabe que ainda vai ter algum sofrimento, que a adolescência vai trazer alguma perturbações, mas eles encaram isso com muita maturidade – destaca a pediatra.
Equilibrar a aptidão incomum para o aprendizado nas suas áreas de interesse e a necessidade de cumprir com o currículo e os ritos escolares é um dos maiores desafios para a família de uma criança com altas habilidades e/ou superdotação, características diferentes, mas comumente associadas e tratadas pela mesma sigla, AH/SD. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), 5% da população brasileira se encaixa neste perfil (algo em torno de 10 milhões de pessoas). A legislação determina o atendimento educacional Especializado (AEE) para este público, mas relatórios da própria pasta apontam a dificuldade do sistema escolar em acolher os alunos “fora da caixa”, de tornar o ambiente escolar atraente para eles e facilitar a sociabilidade, devido ao fato de muitas vezes apresentarem problemas de ansiedade e autoestima.
Em casos como o de Marco Antônio, cujo interesse desde cedo se direcionou para a tecnologia, a impossibilidade de aprender na escola (onde ele estuda a robótica é ensinada a partir do sexto ano, e ele cursa o quarto ano) faz recorrer a tutoriais na internet. Foi assim que aprendeu sobre programação e sistemas operacionais. Enquanto seus colegas se interessam por videogames, Marco quer aprender como os jogos são feitos. Por não se interessar pelo lado lúdico da infância, aprendeu a se divertir sozinho com computador e livros de informática. Mas como evitar se tornar antissocial?
– Tenho amigos na escola, mas é difícil, porque eles gostam de coisas que não têm nada a ver comigo. Não gosto de brincar. Me aborreço. Mas já me acostumei, porque cresci sendo assim – explica o garoto.
Para evitar que a escola se tornasse um tédio para um menino que não desfruta do processo da aprendizagem – como se aprendesse hoje um instrumento musical e na semana seguinte já pudesse apresentar um recital –, professores desenvolveram algumas estratégias para manter o menino interessado. Uma delas, elaborada ainda no primeiro ano, foi uma “atividade extra” para o primeiro aluno que entregasse o exercício do dia. Algo que representasse um desafio. Normalmente Marco Antônio era o premiado.
– A professora tinha outros 24 alunos para se preocupar. Não podia ficar entretendo ele – conta Sirley.
Criar uma criança cuja inteligência põe em xeque a cada dia o conhecimento e o preparo dos adultos requer, antes de tudo, reconhecer que o filho, apesar de criança, não irá se interessar em ser criança. Ao mesmo tempo, entender que, embora seus interesses sejam de adultos, suas responsabilidades e a cobrança devem ser as que recebe uma criança. E encontrar o equilíbrio envolve muito mais perguntas do que respostas.
– O casal precisa estar muito coeso e reconhecer que não há culpados. É uma situação difícil para todos – define a mãe.
Quando a habilidade e o emocional contrastam
No laudo assinado em abril desde ano pela psicóloga cognitiva-comportamental Rafaela Manfroi de Moraes, impressionam alguns números obtidos no teste do menino caxiense Lucas Vinícius Livi. Aos oito anos, sua habilidade cognitiva geral supera 90% das crianças da sua idade. Outros índices em que o menino está além da média são as habilidades de raciocínio não verbal (superior a 93% das crianças da sua idade) e memória operacional (91%).
São dados que ajudam a explicar algumas habilidades que desde os seus primeiros anos de vida chamavam a atenção dos pais, a técnica de laboratório Tassiana Livi, 38, e o comprador Victor Livi, 39, como a curiosidade questionadora e a capacidade de lembrar e descrever praticamente tudo, com detalhes. Habilidades que também ajudaram a compensar dois transtornos de personalidade que em casos normais trariam problemas ainda maiores. Lucas tem Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e Transtorno de Posição Desafiante (TOD).
– Se não fosse a inteligência acima da média, ele dificilmente conseguiria ter sido alfabetizado – explica o pai.
A educação do filho único tem sido um drama para o casal. Agressivo e irritadiço, além de desinteressado pelos conteúdos, na escola Lucas é o típico aluno-problema. Problema que a última instituição em que ele estava matriculado, particular, preferiu não encarar. Na volta das férias de inverno, Lucas, que cursa a 2ª série, foi excluído da escola sem maiores explicações para a família.
– Apenas me falaram (diretora e vice-diretora) que não tinham condições de atendê-lo por conta do mau comportamento dele, e que eu deveria procurar outra escola. Desconsideraram todos os direitos que ele têm por ser fora do padrão. Foi despreparo e descaso – diz a mãe, que prefere não identificar a escola onde o fato ocorreu.
Lucas está na lista de espera por uma vaga em uma escola municipal próximo à residência da família, o que talvez só venha a ser garantido se houver intervenção do Ministério Público, órgão ao qual os pais recorreram no início da semana, também para documentar todo o histórico de tratamento do menino (a fim de evitar qualquer denúncia por negligência, já que o filho está fora da escola).
Foi numa escola pública que Lucas viveu seus melhores dias, mesmo antes de ter recebido o laudo de seus transtornos. Atendido pelo setor de Atendimento Educacional Especializado (AEE), com acompanhamento de psicóloga e de professoras capacitadas para esta especificidade, demonstrou avanços significativos, especialmente no convívio. Contudo, a troca de turno no emprego da mãe (servidora da prefeitura) forçou a troca de escola, algo que não deveria ter sido problema, se não fosse o trauma recente da exclusão.
– Naquele período nos chamaram para várias reuniões, existia uma preocupação de saber o que ele tinha e como ajudá-lo. Mas a gente ainda não tinha esse laudo, porque são testes que só podem ser feitos a partir dos sete anos, quando os sintomas se tornam mais claros – conta o pai.
Enquanto aguardam a definição, em casa os pais colocam em prática o que aprendem nas sessões de terapia, que passaram a frequentar há três meses. São técnicas para amenizar as reações irritadiças do filho, torná-lo mais disciplinado e assim potencializar a sua inteligência acima da média. Cada tarefa cumprida é uma vitória. Sabem que é só aos poucos que os dias irão se tornar mais fáceis.
A importância do incentivo
A próxima segunda-feira (12) será histórica para a Universidade de Caxias do Sul. Pela primeira vez, o Programa de Linguagens da Arte (PLA) irá conceder uma bolsa de estudos para o seu curso de extensão. E a beneficiada é uma adolescente de 15 anos recém completados, cujo talento para desenhar despertou a atenção de seus professores na Escola Municipal Carlin Fabres e também impressionou a doutora em Artes Visuais e coordenadora dos cursos de Artes da UCS, Silvana Boone.
Tímida, Carolina Melara fala pouco e baixinho. Personalidade que contrasta com a desenvoltura e eloquência com os lápis de cor, habilidade que exibe desde os primeiros anos na escola e que chamou a atenção do AEE da instituição. Dotada de uma técnica incomum, os professores perceberam que a escola pouco podia fazer para ampliar o seu horizonte artístico. Foi quando surgiu a ideia de procurar a Universidade e propor a inclusão da jovem no curso de extensão, com duração de um semestre. Neste período, Carolina poderá estudar desenho, pintura e escultura com os demais alunos do Atelier de Produção Integrada, localizado no Campus 8.
– A Carolina tem uma habilidade muito grande, mas ainda está pautada por questões externas. A gente quer trabalhar com ela o processo criativo, para que ela possa sair dessa fase de desenvolver a habilidade, para aumentar o repertório e desenvolver a capacidade de observação, pra construir uma identidade artística. Propus ao nosso Conselho, que é formado por todos os coordenadores de cursos de Artes, oferecer a ela uma bolsa de um semestre. O Conselho foi além e propôs que este se torne um projeto piloto, para que, a partir do ano que vem, a cada semestre, a gente possa oferecer uma bolsa a um aluno de escola pública – conta Silvana.
Na sala de casa, onde mora com a mãe, a vendedora Luciana, 42, e o pai, João Carlos, 49, prestador de serviços gerais, Carolina exibe a mesma pasta que chegou aos professores da UCS. Nela estão alguns de seus desenhos dos últimos anos: ideias para peças de roupa, rostos e paisagens. Além do conteúdo das aulas de Educação Artística, diz gostar de aprender novas técnicas e referências na internet, assistindo youtubers.
– Ela chega da escola e a primeira coisa que faz é ir para o quarto desenhar. É caseira, gosta de estar no mundo dela – conta a mãe.
Para começar o novo curso, Carol ganhou dos seus professores uma caixa com 100 lápis de cor de uso profissional, a sua primeira. Um estímulo a mais daqueles que querem ver a menina, que conhecem e acompanham desde os seis anos, realizar todo o seu potencial.
“Professores têm papel fundamental”
Psicóloga clínica e escolar e mestre em Educação, Carla Martinotto atua junto ao Atendimento Educacional Especializado (AEE) em uma escola de Caxias do Sul. No consultório, participa de avaliações e atende casos de altas habilidades e superdotação. Para a profissional, crianças e adolescentes com alta capacidade cognitiva precisam de educação adequada às suas necessidades, mas é preciso um olhar que vá além do diagnóstico. Afinal, não deixam de ser crianças e precisam viver essa parte importante da sua formação.
– Não se trata de privilégio (nascer com AH/SD). São crianças com suas necessidades particulares e que necessitam de um olhar especializado por parte da família e da escola para seu desenvolvimento – alerta.
A seguir, confira a entrevista com a psicóloga:
Pioneiro: Como deve ser feita a avaliação para identificar casos de altas habilidades ou superdotação?
Carla Martinotto: Essa identificação não é um processo fácil, pois não existe um perfil único que possa defini-los. São pessoas que apresentam características próprias na sua interação com o mundo, uma vez que questionam, e organizam seus pensamentos de modo peculiar. Por isso, a avaliação deve ser feita por uma equipe multidisciplinar, composta por psicólogo, psicopedagogo, pediatra (neuropediatra) e em conjunto com a família e a escola.
Existe uma definição proposta por Renzulli (Joseph Renzulli, psicólogo) que considera esses sujeitos com base na “teoria dos três anéis”. Ou seja, considera-se que existem três traços marcantes: habilidades acima da média (definida como aquele potencial de desempenho significativamente superior); criatividade e comprometimento com a tarefa (uma forma refinada de motivação). Vale ressaltar que a superdotação pode existir em somente uma área da aprendizagem acadêmica, como a matemática, por exemplo, ou pode ser generalizada, em habilidades que se manifestam através de todo o currículo escolar.
Outra questão a considerar são os aspectos de personalidade e a forma com que elas interagem com com a escola e a família. Nesse sentido, os professores têm papel importante na identificação dessas crianças.
A partir da identificação de que a criança possui altas habilidades ou superdotação, há uma recomendação imediata aos pais? Qual a melhor forma de lidar com essa questão?
Os pais precisam escutar e observar o seu filho de modo a identificar as características presentes nele para assim ajudá-los a utilizar suas potencialidades. Ao receberem a notícia de que seu filho tem AH/SD, deverão entrar em contato com o educador da criança, para assim pensarem em estratégias de aprendizagem mais adequadas a ela.
Vale ressaltar que essas crianças necessitam de um olhar por parte dos pais para além do seu diagnóstico. Ou seja, elas continuam sendo crianças com necessidades de viver a sua infância.
Quais são as dificuldades que crianças com AH/SD apresentam com maior frequência, seja em casa ou na escola?
Cada criança com AH/SD possui as suas particularidades, tanto no que tange as habilidades bem como nas dificuldades. Entretanto, é possível inferir que a maioria dessas crianças costuma ser curiosa, questionadora e autônoma, o que pode gerar conflitos ou até situações de exclusão. Além disso, ao deparar com ambientes pouco adaptados às suas necessidades, elas podem se entediar, bem como se sentirem inadequadas. Também é possível observar certa dificuldade por parte dessas crianças em permanecer na escola, principalmente quando se trata de uma escola com métodos ortodoxos e pouco inovadores.
Se as altas habilidades ou superdotação serão um privilégio ou um problema para essas pessoas é algo que irá depender de como o seu desenvolvimento, em casa ou na escola, irá potencializar essas capacidades acima da média?
Não se trata de privilégio. São crianças com suas necessidades particulares e que necessitam de um olhar especializado por parte da família e da escola para seu desenvolvimento. Não raras vezes, elas são “esquecidas” por se acreditar que elas não necessitam de ajuda. Vale ressaltar que, embora elas apresentem altas habilidades, muitas delas não sabem lidar com isso, uma vez que a capacidade cognitiva nem sempre acompanha a emocional.
Estamos falando de um universo bem restrito de pessoas. Percebes que o sistema educacional está preparado para atendê-las adequadamente?
Penso que a educação inclusiva tem muito ainda a caminhar. Os profissionais precisam se preparar para lidar com essas crianças. Nesse sentido, se faz necessário diversificar e flexibilizar o processo de ensino-aprendizagem, com apoio de professores especializados. E isso requer investimento.
Como identificar ah/sd*
Em 2007, o Ministério da Educação publicou a cartilha “Saberes e praticas da inclusão: desenvolvendo competências para o atendimento às necessidades educacionais especiais de alunos com altas habilidades / superdotação”. Em um trecho, são oferecidas dicas para observar características que permitam identificar alunos e alunas especiais. Confira:
—Alto desempenho em uma ou várias áreas
— Fluência verbal e/ ou vocabulário extenso
— Envolvimento ou foco de atenção direcionado a alguma atividade em especial
— Curiosidade acentuada
— Facilidade para a aprendizagem
— Originalidade na resolução de problemas ou na formulação de respostas
— Atitudes comportamentais de excesso para produção ou planejamento
—Habilidades específicas de destaque em áreas como artes plásticas, musicais, artes cênicas e psicomotora, de liderança, etc.)
— Senso de humor
— Baixo limiar de frustração
— Senso crítico
—Defesa de suas ideias e ponto de vista
—Impaciência com atividades rotineiras e repetitivas
— Perfeccionismo
—Dispersão ou desatenção
— Resistência em seguir regras
— Desenvolvimento superior atípico em relação a pessoas de igual faixa etária
—Originalidade e ideias inusitadas e diferentes
*A cartilha na íntegra pode ser acessada na íntegra em http://bit.ly/cartilhamec
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