Colchões surrados ou improvisados em folhas de papelão estendidas no chão, sacolas com roupas que não estão no corpo servindo de travesseiro, garrafas de cachaça e embalagens de marmita. Esse é o lado visível do lamento de viver na rua. O lado invisível é feito de dramas demasiado humanos, que de tão escondidos fazem pessoas que às vezes só têm a companhia do seu próprio medo esquecerem de quem são e do que foram até perder suas batalhas para o vício ou qualquer outra dureza da vida.
De acordo com a Fundação de Assistência Social (FAS), Caxias do Sul tem mais de 400 pessoas em situação de rua ou desabrigo. Debaixo das marquises das ruas centrais, dezenas desses indivíduos que em algum momento abandonaram ou foram abandonados por suas famílias recebem a solidariedade em forma de porções de comida, roupas e calçados para amenizar a fome e o frio. Há nesta seara, contudo, um grupo de voluntários que optou por uma abordagem diferente para a caridade. Mais do que distribuir alimento, doar atenção é a proposta do Café Solidário, cujo lema é "um café, um sanduíche e dois dedos de prosa". A cada segunda-feira, uma dezena de voluntários deste coletivo sai pela área central de Caxias a conversar com os moradores, que muitas vezes estão com a fome saciada, mas com a mente em frangalhos pela perda de afeto e pela frieza que não vem apenas do ar gélido do inverno, mas também do olhar da sociedade.
Criado em 2014, a cada segunda-feira o Café Solidário distribui 15 litros de café, preto ou com leite, e até 150 sanduíches de presunto, queijo e maionese. Vestido com coletes laranjas, o grupo liderado por Jean Felipe Kullmann, 35, tem na maioria dos seus quase 30 voluntários pessoas que conheceram o projeto pelo Facebook e se engajaram pelo diferencial da proposta. A equipe que prepara os lanches e sai para as entregas semanais — que ocorrem entre 21h30min e 1h a partir da Praça Dante Alighieri — é organizada por escalas.
— Sabemos que um sanduíche não mata a fome, mas nosso diferencial em relação a outros grupos de doações está em manter esta relação de amizade. Há pessoas que gostam de fazer a sua boa ação, mas que não se sentem à vontade para ter uma relação mais próxima com os moradores de rua. Nesse caso, o grupo não é para elas. Já tivemos uma pessoa que foi afastada porque o morador "entregou" que ela só o cumprimentava na rua quando estava conosco, nos outros dias virava a cara. Nossa intenção não é interpretar nenhum papel — destaca Jean, chapista em uma hamburgueria.
A verdadeira empatia para além da caridade é difícil de ser alcançada. Jean, que atua em outras frentes solidárias, comenta que é muito mais fácil arrecadar doações para crianças ou para animais do que para pessoas em situação de rua. Para reforçar o orçamento, cada membro do grupo contribui com uma mensalidade de R$ 10. O idealizador destaca que a ideia surgiu após um ato isolado, em que entregou os pasteis que comprou para a filha a um morador de rua. Percebeu que, mais do que se alimentar, o que o homem queria era conversar.
A rua é feita de lutas incertas
Os bate-papos são precedidos por demorados abraços ou por alguma saudação descontraída que quebre o gelo. Tratados pelo nome, os moradores da rua (a maioria homens) contam do seu dia a dia, mostram exames médicos, falam de suas tentativas de obter vaga em clínicas de reabilitação ou reclamam da truculência de alguns agentes públicos. À vontade para falar de sua intimidade, recordam histórias que os fazem lembrar que a vida um dia valeu a pena e acreditar que ainda há algo a ser resgatado.
— Todo mundo que está na rua tem uma desilusão — resume um membro de um grupo de catadores que se reúne em um beco do bairro Pio X.
Nesta mesma viela, acaba de juntar-se aos mais antigos um jovem chamado Matheus. Aos 24 anos, o rapaz de boa pinta e fala bem articulada guarda no bolso direito da calça a carteira de trabalho, a qual abre para mostrar que não recebia mal no último emprego, como pintor predial: R$ 1,5 mil. Ao fazer isso, dá ao seu relato a dimensão do que perdeu ao mergulhar no crack. No outro bolso está o alvará de soltura, que exibe a quem precise provar que não é um fugitivo. Com desdém do próprio azar, conta ter sido preso em flagrante logo no primeiro assalto que cometeu, seis meses atrás. Sua história carrega um traço comum a muitos que habitam as calçadas: ter para onde voltar, mas não querer decepcionar mais uma vez.
— Na última discussão (com a esposa) eu saí de casa apenas para beber e fumar um baseado. Não queria fumar crack. Mas acabou acontecendo. Voltei para casa, peguei meu notebook, meu telefone, vendi e comprei mais droga. Ainda estou com a chave no bolso. Se voltar, será apenas para devolver. Não tenho cara para pedir para voltar, sabendo que posso fazer a mesma coisa de novo. Vou ser sincero. O dia que não aguentar mais a rua, volto para a casa da minha mãe. Porque quando a gente vai preso, é a mãe quem vai levar sabonete na prisão — conta Matheus.
Pai de uma menina de nove meses e referência paterna para dois enteados, Matheus quer que o seu drama, contado no jornal, sirva de alerta:
— Quero que todas as pessoas saibam o que pode acontecer a quem se entrega ao vício.
A droga também é a principal inimiga de um sujeito de fala tímida e riso fácil conhecido pelo apelido de Bracinho, referência ao seu braço esquerdo atrofiado. Bracinho dorme em frente à porta de uma loja na Rua Moreira César. Conta com a boa vontade do dono do estabelecimento, que deixa o rádio ligado no interior da estabelecimento para que ele possa se entreter com um pouco de música (como outros mendigos que contam com a benevolência dos comerciantes, Bracinho é uma presença que pode inibir a ação de ladrões). Há 10 anos nas ruas, desenvolveu certas etiquetas. Uma delas é a de deixar limpa a área onde estiver abrigado.
— Quem passa e vê qualquer lixo no chão vai achar que fui eu. A corda sempre arrebenta no lado mais fraco — diz.
Em uma década na rua, muitas pessoas já tentaram e ainda tentam levá-lo para a reabilitação. Por mais de uma vez acenou com a possibilidade de acatar, mas na última hora as deixou esperando e deu o seu jeito para sumir.
— Não quero prometer mais nada. Porque posso estar mentindo para pessoas do bem e para Deus, que olha lá de cima. Vai chegar o momento certo. Eu sou um usuário controlado. Sabe aquele homem que precisa beber pra virar machão, pra ter uma atitude? Não sou desses. Não deixo o negócio me usar. Acho que a droga não é a culpada, o culpado é o usuário — discorre Bracinho.
Para a minoria que não atravessa problemas com bebida ou drogas, o caminho para a rua pode ser a desilusão após uma perda. Rodrigo, rapaz que há seis meses perambula pela área central de Caxias, o desespero após a morte da mulher fez fugir de tudo que o lembrasse dela na cidade onde moravam, São Francisco de Paula. Ao chegar em Caxias, teve roubados os R$ 4 mil economizados após deixar o emprego em uma madeireira. Desesperado, sem nada e sem ninguém, sobrou a rua.
— Eu tinha uma vida até outubro do ano passado. Era feliz. Mas perdi minha mulher, que era tudo pra mim. Cada plantinha daquela cidade faz lembrar a vida que tinha antes. Aquela cidade para mim é ela. Ainda não me achei com coragem para encarar. Mas sei que Deus tem algo melhor para mim e que, trabalhando, vou conseguir ter tudo de volta — conta o rapaz.
Viver na informalidade não tem sido fácil. À reportagem Rodrigo exibe as mãos inchadas, machucadas após um acidente que sofreu ajudando a descarregar um caminhão de areia, alguns meses atrás (trabalho que renderia R$ 5). Após receber atendimento no Hospital Pompéia, teve de tirar a tala antes do período estabelecido pelo médico, pois precisava das mãos para catar latinhas e ganhar o dinheiro para garantir o almoço. Querendo recuperar os dias que ficou parado, ao voltar ao trabalho bateu seu recorde, mesmo com as mãos machucadas: pelas centenas de latinhas entregues, recebeu R$ 23.
"Chama a atenção a proteção entre eles"
Lidar com os próprios limites da benfeitoria é uma das partes mais difíceis do trabalho voluntário. Para não fugir à proposta e também não interferir em áreas que fogem da alçada da solidariedade, há regras a serem seguida pelos participantes do Café Solidário. A orientação é esclarecer sobre onde o morador de rua pode ter acesso a cada serviço, recomendando procurar o Centro Pop Rua, a Fundação de Assistência Social ou mesmo outras instituições dedicadas a serviços humanitários. Da mesma forma, é vetado dar carona, cigarro, dinheiro ou remédios. É uma forma de resguardar o próprio grupo.
Transformador, o contato tão próximo com pessoas em vulnerabilidade provoca diferentes efeitos em participantes do projeto, cujo dia a dia não é ligado ao trabalho com as camadas menos favorecidas da sociedade. Reconhecer em pessoas de realidades tão distintas a mesma valorização do cuidado e da solidariedade para com o próximo, que pode ser a pessoa instalada num colchão ao lado, foi algo que chamou a atenção de Letícia Rossoni.
— Chama a atenção a proteção entre eles. O carinho para cuidar do outro na doença, no frio. É algo que no dia a dia dos casais a gente nem sempre vê. Também me impressionou descobrir como não são acumuladores. A preocupação é ter o que comer naquela noite, no outro dia ele sai atrás da próxima refeição. Naquele momento, ele sabe que alguém pode estar com mais fome. Da mesma forma, se tu ofereces três casacos, mas ele achar que se vira bem com um, ele só fica com um — comenta Letícia, que participa do grupo há três anos.
As diferentes formas de se relacionar com a rua foi o que chamou a atenção da cerimonialista Claudia Boeira, que participa do grupo junto com o marido:
— Há os que estão 'de passagem', como eles dizem, que querem sair da rua assim que tiverem condições. Já outros preferem estar na rua, porque não se enxergam mais levando outra vida.
Para quem recebe o conforto de pessoas que se dispõem a sair de casa uma vez por semana para uma jornada que, somada, chega a 660 quilômetros percorridos em um ano, sentir-se acarinhado é uma bênção. Há 15 anos nas calçadas de Caxias, Jair Antunes, 43, considera que os "dois dedos de prosa" oferecidos pelos voluntários são mais importantes do que a própria comida:
— Pra gente é uma bênção. Mesmo se estou com sono, quando eles chegam eu paro para conversar. Porque às vezes tu só quer desabafar e não tem ninguém. Tudo o que eu tenho aqui (mostra uma trouxa de roupas e alguns cobertores) ganhei das pessoas. Mas tem dias que tu não precisa de comida, não precisa de roupa, só precisa que alguém pare pra te escutar.
Proteção e acolhimento insuficientes
Fora do mercado de trabalho e à mercê da solidariedade e do bom funcionamento dos serviços voltados para pessoas em vulnerabilidade social, estar nas ruas também representa viver em constante perigo. Das 110 mortes violentas registradas em Caxias do Sul em 2018, 14 envolveram moradores de rua, na maioria das vezes assassinados sem motivação constatada. Outras mazelas envolvem a violência que recebem das autoridades (a orientação é que casos de abuso sejam denunciados à FAS, que encaminha a denúncia ao órgão responsável para apuração interna). Em janeiro, teve ampla repercussão o caso em que um homem foi molhado com uma mangueira por funcionários de uma empresa de segurança contratada pela prefeitura. Qualquer responsabilização só será possível graças a um vídeo que flagra a ação. Casos não registrados pelas câmeras, no entanto, tendem a ficar no limbo (ou seja, é a palavra do morador de rua contraposta à da autoridade).
Com uma rede de acolhimento incapaz de atender à totalidade destas pessoas (o município conta com duas casas de passagem, com capacidade somada para abrigar 70 pessoas), a instituição de referência se desdobra para tentar fornecer o básico. Cerca de 500 usuários passam todo mês pelo Centro de Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua — Centro Pop Rua, onde recebem café da manhã e banho, além de atendimentos como encaminhamento para atendimento médico e psicológico, confecção de documentos e inclusão em benefícios sociais e oficinas profissionalizantes.
Uma audiência realizada em abril deste ano pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal, proposta pelo vereador Rafael Bueno (PDT) tratou da situação dos moradores de rua de Caxias do Sul. Em especial, a diminuição no número de vagas de acolhimento e o aumento no número de mortes. Apesar dos convites, não houve representante da prefeitura presente ao debate.
Esforço reconhecido
Na última segunda-feira, em cerimônia realizada no salão de atos da Reitoria da UCS, a turma do Café Solidário foi uma das 12 instituições homenageadas com o troféu Destaques do Bem, oferecido pela disciplina Oficina de Eventos do curso de Relações Públicas da Universidade. Neste semestre, a iniciativa homenageou pessoas que realizam trabalho voluntário ou estão engajadas em projetos de viés transformador. Entre os premiados estiveram projetos já bastante consolidados, como o Projeto Mão Amiga e a ONG Amor Vira Lata.
— Ficamos extremamente felizes e também surpresos, pois temos o entendimento que nosso trabalho, por lidar com pessoas dependentes e que muita gente acha que estão nessa vida porque querem, nem sempre é bem visto. Mas a gente sabe que, em muitos casos, foi a última saída que essas pessoas tiveram. Foi extremamente gratificante ter esse reconhecimento para o nosso trabalho, que é quase invisível pelo horário, pelas pessoas que a gente beneficia e pela pouca divulgação — destaca Jean.
Saiba mais
Para mais informações e para saber como ajudar o projeto dos voluntários caxienses, acesse a página do grupo no Facebook: Café Solidário - Caxias do Sul
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