A era dos podcasts e do Spotify tem sido responsável por revigorar para o mundo contemporâneo um formato que caiu em desuso há anos: o das radionovelas. Nesse cenário um pouco "museu das grandes novidades" surgem os áudio dramas, também chamados de podnovelas (num trocadilho com os podcasts), que nada mais são que uma versão modernizada das antigas narrativas seriadas criadas para o rádio.
Em Caxias do Sul, o trabalho conduzido pelos irmãos Joe e Guido Guidini, de 26 e 29 anos respectivamente, chama atenção nesse cenário, transformando a dupla em protagonista de uma cena que ainda engatinha no Rio Grande do Sul. O áudio drama Aventuras Bizarras é conduzido somente pelos dois, que gravam no quarto de casa, com um cobertor preso à janela para abafar os sons externos. Mas não pense que os irmãos caxienses são menos preparados artisticamente que os antigos profissionais do rádio. A dupla tem anos de experiência no teatro e consegue, com poucos recursos, transportar o ouvinte para cenários tão distintos como o espaço ou um acampamento na mata. Sozinhos, os dois são os responsáveis por interpretar as dezenas de personagens que surgem nos episódios do áudio drama — dois estão no Spotify e o terceiro chegará no último fim de semana de março.
Além do teatro, a formação em Publicidade e o gosto por cultura pop contribuíram para uma facilidade gigantesca em criar histórias — algumas bem bizarras como o nome do áudio drama adianta.
— Antes de começar o posdcast a gente já fazia muita coisa junto. Irmão se bate, se quebra, mas a gente era muito parceiro, estava sempre inventando alguma palhaçadinha. Todos os personagens que a gente tinha, queríamos criar um universo cinematográfico para eles, mas não tinha como, por questões técnicas. Até gravamos um piloto, mas não deu certo (risos). Então a gente mudou de ideia e criou um universo cinematográfico, só que radiofônico — justifica Joe.
Nas histórias do Aventuras Bizarras, os próprios Joe e Guido se transformaram em personagens e são eles que conduzem cada uma das narrativas. Mas além das vozes originais deles mesmos, os irmãos se transformam ainda em velhos, crianças e até em extraterrestres por meio de interpretações na voz e truques de áudio. Tudo é feito de forma simples e amadora, mas o ritmo envolvente das histórias e a esperta edição (assinada por Guido) chamam atenção no cenário de áudio dramas, fazendo dos caxienses protagonistas de uma cena que ainda engatinha no Rio Grande do Sul.
— Acho que o principal diferencial do nosso podcast é essa preocupação em não ler o roteiro e tentar colocar imagem no som, tentar trazer o máximo de referência sonora possível para a pessoa ter um signo — aponta Guido.
— Eu estou adorando esse universo, é muito mais fácil do que fazer para o YouTube, a gente consegue fazer mais com poucos recursos. E está se criando uma comunidade muito legal, portas estão se abrindo para uma "cena radiofônica" — complementa Joe, também animado com a inserção do Aventuras Bizarras na plataforma Podcastchê, rede gaúcha de podcasters.
Com referências que vão desde o podcast gringo Rhett & Link até o personagem brasileiro Uilame (criado pelo Crifra Club nos primórdios dos podcasts), Joe e Guido tentam abastecer o Aventuras Bizarras com informação e humor. O segundo episódio da série, por exemplo, atualiza a lenda gaúcha do Gritador para o áudio drama.
— Queremos resgatar coisas esquecidas e misturar com as loucuras da nossa cabeça. No teatro fazíamos muito isso, pegávamos algum clássico e fazíamos uma adaptação em cima — diz Guido.
Com um investimento total de R$ 45 para criar e manter o Aventuras Bizarras no ar, os caxienses comemoram o fato de os dois episódios da série terem sido ouvidos mais de 300 vezes até agora, inclusive em lugares como Irlanda, Uruguai, Austrália e Inglaterra.
— Eu não quero botar mais grana, quero que os outros paguem — resume Joe, sobre os planos empreendedores da dupla no universo do áudio drama.
Da radionovela ao áudio drama
Apesar de trocarem o espaço por vezes glamurizado dos estúdios de rádio pelas gravações caseiras feitas no próprio quarto, na verdade, não há tanta diferença assim entre as radionovelas e os áudio dramas. Para o produtor de áudio, sound designer e autor do áudio drama (de nome autoexplicativo) Contador de Histórias, Danilo Battistini, o áudio drama é como um "cinema sem imagem", ou seja, traz uma narrativa contada única e exclusivamente pela composição de sons.
— Uma radionovela não deixa de ser um áudio drama porque, no fim das contas, ela é uma história dramatizada em áudio. Na minha opinião, o áudio drama tem esse nome mais popular hoje porque ele passou a ter na internet muitos outros canais para ser divulgado e para as pessoas ouvirem do que simplesmente o rádio — aponta o profissional de 29 anos, morador de São Paulo.
Algumas particularidades diferem os atuais áudio dramas das antigas radionovelas. Entre elas está a comodidade dos nossos tempos para gravar áudios com qualidade profissional sem sair de casa, facilitando o trabalho de pós-produção para inserir efeitos, modular vozes e afins. No caso das radionovelas, populares no Brasil principalmente entre as décadas de 1940 e 1950, muitas vezes a encenação e os "efeitos" eram feitos ao vivo. Enquanto, antigamente eram necessários muitos profissionais atrás do microfone, agora a regra é o "faça você mesmo".
— Podcast é um dos elementos importantes para renovar o rádio. Já tivemos um boom e apagou. Aí retomou agora com muita força na questão ficcional. Seja musical ou jornalístico, o rádio trabalha cada vez mais na perspectiva ao vivo. A própria rádio jovem ficou mais falada em algumas emissoras. A profundidade de uma entrevista mais longa ou de um debate mais longo, documentário, me parece que tende a migrar para o podcast — aponta Luiz Artur Ferraretto, coordenador do Núcelo de Estudos de Rádio da UFRGS.
A internet parece mesmo a grande responsável pelas mudanças comportamentais mais drásticas dos últimos anos. Enquanto muito jovens buscam no YouTube uma ferramenta para divulgar suas ideias — geralmente, amparados no sonho de ficarem tão famosos quanto Whindersson Nunes ou Felipe Neto — há outro grupo de criativos que prefere usar somente a voz para jogar suas ideias ao mundo. Na era da imagem, optar pelo trabalho exclusivamente com áudio, é certamente um desafio a ser respeitado.
— Tal qual as grandes emissoras têm encontrado resistência com o dinamismo do público novo e se reinventando para ficar mais "YouTube", o áudio drama é a evolução da radionovela, haja visto que não há necessidade de que os produtores da obra sejam profissionais da área. O mero entusiasmo e dedicação já abrem portas pra isso. No caso, o "YouTube" do áudio é o formato podcast — defende o carioca Vitor Hugo Motta, 37, integrante da Agência Transmídia e produtor do áudio drama Sentinelas.
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