Descalços, nós jogávamos futebol na calçada e no meio da rua. Passava um carro a cada meia-hora e isso que havia duas mãos. E já era o bastante para nos incomodar, obrigados a parar a bola. Ficávamos cristalizados, duros como estátuas, guardando a posição do último lance até que aquela "tartaruga", a dez por hora, cumprisse o seu rito de passagem.
Nas noites quentes de verão brincávamos às tardanças, sem o menor receio. Só regressávamos as nossas casas após insistentes pedidos dos pais e sob a ameaça de que iriam fechar as portas – o que sabíamos que nunca fariam, mas, por via das dúvidas, era conveniente não arriscar. Em certas audaciosas noitadas, assaltávamos os quintais dos vizinhos, incluindo os da família. Éramos ladrões honestos e democráticos. A gente tinha caráter suficiente para roubar frutas em todos os lotes. Depois, alegremente, com os bolsos cheios e, às pressas, pulávamos as cercas arranhando o couro no aramado e quase deixando as calças penduradas. Comíamos as ameixas, peras e maçãs dando um pinote nos vermezinhos. E ninguém adoecia.
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Nas escolas só fazíamos amigos. Todos se gostavam. Se às vezes irrompesse alguma encrenca, os brigões trocavam socos e sopapos, mas voltavam às boas no dia seguinte. Dificilmente, raramente, se acumulavam sobras de rancores. Ninguém esfaqueava ou estrangulava o colega. Nenhuma gangue existia. E por nada desse mundo se depredavam salas de aula. Professores eram amados, intocáveis em seus altares.
Ah, claro, um que outro bandido não deixava de marcar sua presença. No entanto, não passavam de inconsequentes e modestos facínoras. Afanavam o mínimo, se contentavam com meia-dúzia de tostões. Não levavam roupas, nem bonés ou tênis. Larápios de galinheiros. Se os assassinatos passassem de dois ou três por ano, consideravam os seus índices alarmantes.
As portas e janelas persistiam abertas o dia inteiro. E não se costumava trancá-las com chaves. As vidraças serviam de telas de televisão. Mesmo sem ligação consanguínea, a vizinhança pertencia ao nosso parentesco. O que afetava um lar – de bom ou de ruim – comprometia a todos. Propinas, sinônimos de gorjetas. Drogas: de porcarias. Os políticos eram discretos e sóbrios. A praça para passear e namorar. Corríamos de bicicletas sem necessidade de vias expressas.
Nossos carrinhos de lomba voavam de esquina a esquina. As meninas desfrutavam da estima dos meninos. Aos adultos dedicávamos cumprimentos civilizados. Por isso, bom dia, senhor, boa tarde, senhora. Muito obrigado pela leitura e desculpem por qualquer coisa.
Opinião
Francisco Michielin: houve um tempo assim
"A praça era para passear e namorar. Corríamos de bicicleta, sem vias expressas"
Francisco Michielin
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