Nem bem ainda havia clareado quando a cidadezinha despertava aos bocejos. As crianças se espreguiçavam, ganhando tempo até o dissipar da escuridão, à espera que filtrasse o brilho vítreo do sol. Seus pais, todavia, já se punham imediatamente de pé. Um cheiro de café tresandava do bule e sem pedir licença, aromatizava tentadoramente os quartos. Lá fora o leve vento mal conseguia soprar a fumaça das chaminés. As folhas das árvores esboçavam lentos exercícios de ginástica matinal, quase imóveis, balouçando sua letargia.
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Depois, o rito da mesmice de todos os cotidianos. Três ou quatro palmadas fortes e um berro anunciavam a chegada do leiteiro. As mulheres acorriam ao redor dos tarros, enquanto a carroça do padeiro oferecia pães quentinhos. E sendo verão, os homens do gelo cortavam compactas barras aos pedaços, para que as geladeiras sem eletricidade – aliás, a maioria, senão todas – pudessem conservar os alimentos perecíveis e resfriar as bebidas de um dia calorento para o outro. Para a gurizada, uma festa: pegavam as lascas caídas no solo e as esfregavam nas camisas para tirar o pó, lambendo-as, felizes, como o picolé da hora. Na pior das hipóteses, faziam guerra de gelo. Os tempos tinham essa graça. Essa mansidão azul.
Ao meio-dia, as firmas apitavam o término do expediente e os pais apressavam-se para seus domicílios. Sem atrasos, as mesas serviam almoços triviais, mas substanciosos. Pudim ou creme com sagu encantavam a sobremesa, quando não, as “nonas” nos deliciavam com cucas de crostas açucaradas e incrustadas de passas de uva, disputadas gananciosamente. Depois, respeitoso silêncio permitindo o cochilo dos varões, num breve repousar para retornarem aos respectivos serviços. Seus filhos sabiam de suas obrigações e sempre sobravam horas para empolgados folguedos. Até para os temas.
Enfim, a noite batia em nossas portas. Raramente se usava chaves para trancá-las. Luzes pálidas acendiam tranquilidade nos lares simples e honestos. Refeições requentadas geralmente abasteciam o jantar das pessoas fartas e satisfeitas. Ou optavam por um café encorpado por rodelas de salame e fatias de queijo. Às vezes, se caprichava com mais requintes: fritavam-se bifes e as omeletes esparramavam-se amarelonas nas frigideiras. O aparelho de rádio, atentamente escutado pelas famílias, chiava tanto que atrapalhava a sonoridade da audição. Nossos cãezinhos e gatos acalentavam o sono à beira dos fogões à lenha. E todos iam para a cama por volta das dez, fazendo preces ligeiras na expectativa de ter afugentado o exército noturno dos capetas para, enfim, dormir na santa paz do Senhor.
Opinião
Francisco Michielin: em algum lugar do passado
Os homens do gelo cortavam compactas barras aos pedaços, para as geladeiras sem eletricidade
Francisco Michielin
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