O universo familiar é terreno fértil para o cinema de Anna Muylaert. E nesse terreno as mães reinam absolutas, seja na pele da velhinha bizarra de Durval Discos (2002) ou da forte personagem de Regina Casé em Que Horas Ela Volta? (2015). Em seu mais recente trabalho, Mãe Só Há Uma, a premiada cineasta busca inspiração num conhecido caso de polícia para dar vazão a não uma, mas duas mães de um mesmo garoto adolescente. Aqui, as figuras maternas (ambas interpretadas por Dani Nefussi) ajudam a temperar o caldo para uma saborosa história sobre formação de identidade na adolescência. Mãe Só Há Uma estreia nesta quinta na Sala de Cinema Ulysses Geremia, em Caxias.
Anna Muylaert buscou inspiração para o longa numa história popularmente conhecida como caso Pedrinho, que ocupou os jornais de todo o país em 2002. Nada menos que uma novela da vida real, onde um adolescente acaba descobrindo que havia sido roubado enquanto bebê, e que sua família biológica não era aquela com a qual morava. Apimentando a história para o cinema, o roteiro de Mãe Só Há Uma acrescenta uma bem-vinda discussão de gênero em torno do adolescente em questão.
O personagem central do longa é Pierre (na pele do estreante Naomi Nero, sobrinho de Alexandre Nero), um adolescente curioso quanto à própria sexualidade. Essa característica fica evidente logo na primeira sequência do filme, na qual Pierre aparece vestindo cinta-liga e fio dental enquanto beija uma garota. A figura de Pierre em Mãe Só Há Uma sugere uma representação bem contemporânea da juventude que busca compreender a si experimentando tudo que há para experimentar. A trilha que define esse recorte juvenil podia muito bem trazer o hibridismo de gênero de Liniker, mas a diretora preferiu a clássica banda A Cor do Som e seus versos atemporais "Eu só quero amor, amor, amor....Dentro da minha cabeça". Assim, o espectador descobre aos poucos que Pierre curte meninas, meninos, saias, vestidos, maquiagem, música, etc.
Toda essa curiosidade juvenil é envolta por certa harmonia familiar na casa simples que o adolescente divide com a mãe e a irmã mais nova. A desestabilização surge com um inesperado pedido de DNA, a prisão da mãe, e o acolhimento repentino por uma nova e bem mais rica família, a biológica. Pierre agora é chamado de Felipe por pais que procuraram por ele durante 17 anos. Só que o adolescente não está disposto a deixar de ser quem era para se tornar quem os novos pais esperam que ele seja. O mais incomodado com a situação é o pai, interpretado pelo sempre ótimo Matheus Nachtergaele. Anna Muylaert segue a máxima de que "a família é primeira instância do Estado na nossa vida" e os conflitos que se seguem na tela vão exatamente de encontro a isso.
Premiado no Teddy Awards (mostra dentro do Festival de Berlim dedicada às produções com temática LGBT), Mãe Só Há Uma não carrega a genialidade do sucesso Que Horas Ela Volta?, mas segue a mesma linha de raciocínio do cinema de Anna Muylaert: retratos extraordinários sobre vidas comuns.
Cinema
"Mãe Só Há Uma", de Anna Muylaert, estreia nesta quinta em Caxias
Filme está em cartaz na sala Ulysses Geremia
Siliane Vieira
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