Impossível passar indiferente por ele. Em meio ao corre-corre do Centro e à "cidade que não para", adentrar no antigo casarão de madeira da família Amoretti, na Rua Marechal Floriano, 858, entre a Júlio de Castilhos e a Sinimbu, é embarcar em uma espécie de túnel do tempo. Um oásis onde as horas passam mais devagar, onde quase não se ouve o barulho da rua, dos carros e ônibus, do entra e sai nos modernos prédios envidraçados do entorno, do vaivém de gente, enfim, do fluxo constante de uma das vias mais movimentadas de Caxias.
Foi o que aconteceu no início de dezembro, quando as irmãs Ivanize Maria Amoretti Sartori, Teresinha Lais Amoretti e Gislaine Diniza Amoretti abriram as portas para este jornalista, que há muito observava e tinha curiosidade sobre a história por trás daquelas paredes e daquele imenso "lote" verde. Uma história de mais de 120 anos, cujos detalhes vão muito além dos limites do terreno. Mesclam-se ao pioneirismo do filho de imigrantes italianos Nicolau Amoretti ainda em Porto Alegre, à sua decisão de mudar para a Serra Gaúcha, aos primórdios da Freguesia de Santa Tereza, à Colônia Caxias, à evolução da cidade, à família, aos filhos, netos, bisnetos e a uma descendência que segue gerando frutos até hoje.
Nicolau Amoretti: um porto-alegrense na Colônia Caxias
A padaria dos irmãos Amoretti e o clássico pão "cervejinha"
Quem tomou a iniciativa de resgatar todo esse baú de memórias foi dona Ivanizi Maria Amoretti Sartori, 86 anos. Professora aposentada, ela responde pela publicação Resgatando o Passado, fruto de mais de 10 anos de pesquisas e lançada no último dia 29 de novembro em um local estratégico: a Livraria do Maneco, a poucos metros do casarão da Marechal Floriano — onde ela morou de 1950 até casar, em 1962. Neta do casal Nicolau Amoretti e Maria "Marieta" Santini e a quarta dos 10 filhos de Antônio "Nico" Amoretti e Victória Troian, dona Ivanizi faz um relato minucioso, didático e, por isso mesmo, apaixonante da história familiar, cujos trechos originais iremos reproduzir em itálico ao longo desta reportagem:
"Este é o início de uma história que veio de longe. A história que vou contar é baseada em relatos orais que ouvi de meus antepassados, sendo que datas e certos relatos extraí de obras e registros dos historiadores caxienses João Spadari Adami e Mário Gardelin. De Gênova, região da Liguria, situada ao norte da península italiana, partiram três jovens da família Amoretti: um deles radicou-se na França, os outros dirigiram-se para a América do Sul. Chegando em São Paulo, ali não se adaptaram, continuando sua viagem mais para o Sul. Um seguiu para a Argentina, onde fincou raízes. O terceiro, João Baptista, meu bisavô, apelidado de “Rato”, fixou residência em Porto Alegre, onde constituiu família. Sua esposa, também italiana, chamava-se Catherina. Em 1852, nasceu seu filho Nicolau Luiz Amoretti, meu avô".
O avô de dona Ivanizi chegou ao antigo Campo dos Bugres por volta de 1876, como auxiliar da Comissão de Terras e Medição de Lotes, ajudando a fiscalizar os terrenos vendidos.
"Nicolau adquiriu o lote três da quadra cinco, onde construiu sua residência e nela criou sua numerosa família. Este terreno atualmente está situado na Rua Marechal Floriano, 858, e ainda continua na posse e propriedade de seus herdeiros, descendentes de seu décimo sexto filho, Antônio Amoretti".
Os filhos
Além de Antonio Amoretti, o "Nico", a prole de 19 filhos de Nicolau e sua esposa Maria era completada por João, Luiz, Sebastião, Nina, Carlim, Antonieta, Hermínia, Amélia, Zulmira, Ida, Arnaldo, Delícia, Maria, Marina, José, Cecília, Gastão e Silvia. Foi na época em que os filhos mais velhos tinham em torno de 15 anos que o primeiro casarão erguido por Nicolau sucumbiu.
"A primeira casa de meu avô foi destruída por um incêndio ocorrido durante a Revolução (Federalista) de 1893. Cheguei a esta conclusão ao ler a História de Caxias do Sul, escrita por João Spadari Adami. Como a casa de Nicolau situava-se na mesma quadra de importantes prédios públicos que foram atacados, saqueados e incendiados durante as 15 horas de estadia dos revolucionários, ela também deve ter tido o mesmo fim".
Sem moradia, os Amoretti migraram para São Sebastião do Caí, dando continuidade à produção de pães, uma atividade desenvolvida pela família ainda em Porto Alegre. No Caí ficaram até a construção de outra casa, em meados de 1898, no mesmo local da consumida pela fogo, à Rua Marechal Floriano, 858, o que permite afirmarmos: trata-se, muito provavelmente, do mais antigo endereço de Caxias habitado por descendentes de uma mesma família.
"Com a forte madeira extraída dos pinheiros nativos, com os grossos caibros de madeira de lei a sustentá-la, a casa, ora centenária, continua a abrigar os descendentes de quem a construiu, sendo que ainda hoje existe o anexo de toscos tijolos unidos a barro onde era padaria. Hoje, adaptado, é o salão de festas da família. Mais tarde, as tabuinhas do telhado da casa foram substituídas por folhas de zinco, foram acrescentados uma cozinha e dois banheiros de alvenaria. Com um conserto aqui, uma pintura ali, ela vai resistindo ao tempo, acolhedora como sempre foi".
A família de Antônio Amoretti
Antônio Amoretti, cujas filhas Teresinha Laís Amoretti e Gislaine Diniza Amoretti moram no casarão até hoje, nasceu em 27 de setembro de 1902. Com a morte do pai, Nicolau, em 1908, "Nico" precisou auxiliar a mãe no sustento da casa e dos irmãos desde cedo. Aos 14 anos, juntamente com o irmão Arnaldo, fundou um estabelecimento comercial, a Casa Gaúcha, localizada entre Ana Rech e Vila Seca.
Foi lá que ele conheceu a jovem Victoria Troian, com quem casou em 7 de janeiro de 1928. A união foi abençoada com o nascimento de 10 filhos: Iracema de Lourdes, Gislaine Diniza, Sergio Nicolau, Ivanizi Maria (autora do livro da família), Arnaldo Antonio, Natal José, Marina, Teresinha Laís, Mario Alberto e Rogério (todos na foto acima).
"Os quatro primeiros filhos de Nico e Victória nasceram na Casa Gaúcha, estabelecimento comercial localizado na Boca da Serra. Até que o irmão e sócio Arnaldo adoeceu e o negócio foi encerrado. Em 1934, Nico transferiu-se com a família para a Fazenda dos Ilhéus, nos Campos de Cima da Serra, onde, em sociedade com o irmão Gastão adquirira uma propriedade de 100 hectares do cunhado Guerino Sartori. Estabeleceu-se com outra loja, a Casa Branca da Serra, que muito progrediu. No ano de 1942, a família mudou-se para Caxias."
Por aqui, Victória e Nico, em sociedade com as irmãs Maria e Ida Amoretti, atuaram como ecônomos do Recreio da Juventude, então localizado no prédio da esquina das ruas Visconde de Pelotas e Sinimbu (atual Círculo Operário Caxiense), onde a família também passou a morar. Posteriormente, em 1946, instalaram um restaurante na Avenida Júlio, ao lado do Cine Central, residindo na parte superior e nos fundos do sobrado. Já em 1948, Nico adquiriu o velho casarão da Rua Marechal Floriano, porém, "habitado".
"Os Amoretti, meu pai e seus irmãos, haviam doado suas partes da propriedade da Rua Marechal Floriano para as irmãs solteiras Maria, Ida e Hermínia. Tia Ida já falecera e as outras queriam vender, para sua sobrevivência. Mas tinha de ser para um dos irmãos, pois os tios doentes João e Arnaldo, mais o tio Carlim, tinham de ficar morando na casa".
Assim foi. A mudança para o casarão da Marechal Floriano deu-se em 1950, quando o imóvel foi adquirido das tias que haviam herdado a propriedade. Era fevereiro, e a adolescente Ivanizi retornava das férias na Praia da Cal, em Torres. A chegada na nova moradia, "a espaçosa e velha casa de madeira", foi relembrada com riqueza de detalhes no livro:
"Achei tudo muito bonito. Tinha sido adaptada, toda pintada e a cozinha era construção nova. As manas Ira (Iracema) e Laine (Gislaine) iam me mostrando as peças arrumadas. No fim do corredor, um alçapão com escada, dando para o porão de chão batido, onde se guardavam, e ainda se guardam, lenha, garrafas e velharias. Separada ficava a parte onde moravam os tios. Uma passagem coberta ligava e liga o corpo da casa de madeira à cozinha velha de tijolos com barro, onde ainda existia, nos fundos, o forno da antiga padaria dos tios. Mais tarde, com o passamento dos tios, esta parte da casa destinada a eles foi modificada e utilizada por nós. Todas essas peças, 17, fazem parte do casarão, de uns 14 metros de frente por uns oito de fundo, edificado junto à calçada, num terreno de 22 por 44 metros".
Aliada a toda essa área, a localização privilegiada, obviamente, já despertou a especulação imobiliária. Conforme a família, várias propostas para a compra do terreno já foram feitas nos últimos anos, algo que nunca passou pela cabeça dos herdeiros — e que encontra eco em uma das passagens do livro:
"Suas tábuas e caibros resistentes são de cerne de pinho. Para fincar um prego, ainda hoje, precisa-se de muita força".
A mesma força que mantém os Amoretti à frente do casarão há mais de um século…
Diversão e aulas particulares
Lembranças da juventude no casarão não faltam às irmãs Amoretti e a quem passou por lá, seja à diversão ou para "reforçar" o aprendizado. Professoras "desde sempre", dona Teresinha, 78 anos, e dona Gislaine, 90, até hoje são procuradas por ex-alunos que passaram pelo casarão para visitas e aulas particulares de Português, Inglês, Francês, Matemática, além de várias outras disciplinas das séries primárias. Outra constante na casa era — e ainda é — o entra e sai de amigos, parentes e vizinhos, recordado em uma das passagens do livro:
"Na casa da Rua Marechal Floriano, onde moramos mais tempo, foi onde fizemos as amizades mais duradouras: os De Carli, os Paglioli, os Da Poian, os Estiphan, os Stedile, os Hudson, estes dois últimos pastores da Igreja Metodista".
Aliás, de todos os endereços e locais que fizeram história na antiga vizinhança dos Amoretti, a Igreja Metodista, fundada em 1892, é a única que segue firme. Ficaram na memória a Garagem Modelo, as lojas Alfred (Tecidos e Artefatos Kalil Sehbe), o posto de gasolina da família Da Poian, o palacete de Ary De Carli (na esquina da Marechal com a Júlio), o lendário Foto Studio Beux, praticamente grudado à casa, e a mansão da família de Angelo De Carli, na esquina com a Sinimbu — atual Centro Comercial Victoria De Carli.
Uma das passagens do livro destaca as festas no terreno vizinho:
"Em conjunto com a vizinhança, por duas ou três vezes, organizou-se a Festa de São João. O terreno do seu Angelo De Carli, ao lado do nosso, estava sem muros por causa das obras. Nele armava-se a fogueira, com muita lenha e muitos pneus. Eu e minhas irmãs não deixávamos de fazer as simpatias de São João, como a do papel pingado de tinta e dobrado. Conforme o desenho que se formava, vinha a previsão do futuro. Flores significava alegria, festa. Cruz significava morte. Grinalda, casamento. Bons tempos aqueles!"
Falando em grinalda, o casarão também foi cenário para o namoro da jovem Ivanizi com Venísio Sartori, falecido em 2015.
"Ele trabalhava em Galópolis, no Lanifício São Pedro, e eu lecionava em Santa Corona, na metade do caminho. Disse que, às vezes, viajávamos no mesmo ônibus, outras vezes me avistava aguardando condução, na estrada. Venísio começou a frequentar a casa, com a aquiescência dos meus pais, às quartas-feiras, sábados e domingos. No Natal de 1961, noivamos. Um ano depois, a 4 de janeiro, unimos nossas vidas pelos laços do casamento".
Não por acaso, é uma foto de Ivanizi e de seu Venísio na janela da construção de tijolos aparentes da velha padaria, no meio do terreno, que estampa a última página de Resgatando o Passado. E anexado à contracapa, uma detalhada árvore genealógica da família, atualizada e escrita à mão pela autora, com os bisavós, avós, tios, primos, segundos primos, filhos, netos e bisnetos da linhagem Amoretti, já em sua quinta geração. Tudo emoldurado por uma frase que antecipa o novo livro que está sendo preparado por dona Ivanizi :
"E a história continua…"
O livro
:: Título: "Resgatando o Passado"
:: Autora: Ivanizi Maria Amoretti Sartori
:: Editora: São Miguel - 162 páginas
:: Preço: R$ 40, disponível na Livraria do Maneco
Datas
Nicolau Amoretti, pioneiro de toda essa história, faleceu em 1908, aos 56 anos. A esposa, Maria Santini Amoretti (Marieta) morreu em 1939, aos 77. O filho Antônio Amoretti nasceu em 1902 e faleceu em 1970, aos 68 anos. A esposa Victoria morreu em 1991, aos 81 anos.
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