Dos mais de 10 mil itens armazenados pelos museus de Caxias, nenhum é mais antigo do que um prato de cerâmica decorado com pássaros e formas geométricas em azul-cobalto, lembrando traços orientais. A peça, de origem espanhola, chegou ao Museu Municipal em outubro de 1975, doada por Maria Alba Seibert Bracht. Conforme a ficha de registro, o prato teria sido fabricado no século 16 — data que até hoje não foi confirmada pela equipe do museu, embora jamais tenha sido refutada.
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Diante de tantas preciosidades, é difícil escolher as histórias mais curiosas. Por isso, pedimos ajuda à coordenadora do setor, que guiou a reportagem nas duas visitas realizadas ao longo da semana.
Foi Marizete Raimann que nos apresentou uma mala de madeira e couro possivelmente fabricada na década de 1950. O item pertenceu a Abramo Benedetti, um dos fundadores da Companhia Vinícola Rio Grandense. Um tanto gasta pelo uso e pelo tempo, a mala conta sua história em alguns adesivos colados na parte externa. Num deles, é possível ler "San Antonio Hotel", registrando a passagem de Benedetti pelo Uruguai, viagem que fez de navio a vapor.
Alguns passos adiante, mais uma história curiosa: um vestidinho de bebê em tecido de cambraia. A peça foi confeccionada artesanalmente por Leonida Maria Haab há cerca de 70 anos, e foi usada no batizado de seis dos seus sete filhos. Como era costureira, ela reaproveitava retalhos de peças dos clientes para confeccionar as roupinhas das crianças. O conjunto foi doado ao Museu Municipal em março de 2014 pela caçula de Leonida — curiosamente, a única filha a não utilizar a roupinha no batizado.
Mas talvez o que mais chame atenção na reserva técnica seja um conjunto de peças cemiteriais armazenadas num dos cantos do edifício. São cruzes de metal, estátuas e lápides mortuárias — um acervo construído aos poucos, com itens muitas vezes encontrados em locais de descarte.
— As cruzes que temos aqui foram coletadas em cemitérios de localidades do interior. Algumas delas em Nova Palmira, outras em Santa Lúcia do Piaí. Elas são bem pesadas e ricamente trabalhadas — conta Marizete.
Em destaque, um trio de anjos com as mãos postas em sinal de oração. As peças foram coletadas no Cemitério Público Municipal em dezembro de 2006, numa antiga ala infantil que seria desmanchada para a construção de novos jazigos.
— Pelas características e pela época, esses anjos provavelmente foram produzidos no atelier da família Zambelli, responsável pela maior parte das imagens sacras de igrejas e capelas da região.
Atrás dos anjos, outra peça chama atenção: uma lápide de cimento com dizeres em italiano. O objeto funerário, que chegou ao Museu em 1999, foi oferecido por Abramo Eberle, em data desconhecida, ao túmulo do casal Luigia e Libório Costa, falecidos em 1911 e 1912. Antes de repousar na reserva técnica, a lápide encontrava-se na Capela Nossa Senhora das Dores, na 7ª Légua.
DOADORES DE MEMÓRIAS
Em que pese a dedicação dos servidores públicos à reserva técnica, a montagem de um acervo que ajuda a contar inúmeras histórias de vida só foi possível graças a inúmeras pessoas que doaram pertences de seus antepassados. Os itens recebidos pelo Museu Municipal vão de formosos guardanapos bordados pelas nonnas, no interior, a capelinhas de madeira que passavam de casa em casa como sinal de devoção.
Uma das doadoras mais assíduas é a escritora Lourdes Curra, 86 anos. Filha de Heitor Curra, prefeito de Flores da Cunha na década de 1930 e que se mudou para Caxias para atuar como escrivão, em 1941, Lourdes doou ao museu roupas infantis do início do século passado, além de peças bordadas que eram utilizadas na cozinha dos avós.
— Como todos os meus irmãos já faleceram, achei interessante doar para o museu, onde ficarão preservados e poderão ser apreciados por outras pessoas — relata a escritora, que já fez doações de livros à biblioteca da UCS e de um acervo de fotos e documentos da família ao Arquivo Histórico João Spadari Adami.
A intenção de colocar objetos históricos à disposição da comunidade também motivou Afonso Cesa Neto, 64 anos, a procurar a reserva técnica. O bancário já deixou aos cuidados da instituição um jogo de lençóis que pertenceu à avó e uma coleção de lápis antigos mantida por anos pela mãe, já falecida.
— Minha mãe foi funcionária da antiga Loja Renner, lá nos anos 1950. Na época, era comum que os representantes distribuíssem lápis como brindes em visitas. E a mãe foi colecionando. Quando ela faleceu, meus filhos não se interessaram, ninguém quis ficar com a coleção. Por isso doei para o museu, que tem qualificação para conservar o acervo e eventualmente utilizar em exposições.
Segundo Marizete, a maior parte das pessoas que buscam o Museu Municipal para doação de peças antigas é motivada por dois fatores. Por um lado, a confiança de que a instituição tem capacidade técnica para preservar um objeto que carrega incontáveis memórias. Por outro, o temor de que as peças não seriam mantidas pelas novas gerações da família, uma vez que a ligação emocional com o item não é necessariamente a mesma.
— Uma peça tem valor quando carrega uma história. E o cultivo dessas lembranças faz com que ela fique marcada não só para a família que doou, mas para nós, que somos os guardiões da memória — avalia a coordenadora.
Para doar objetos de valor histórico ao Museu Municipal, é preciso entrar em contato pelo telefone (54) 3221-2423 e conversar com o setor de reserva técnica.