Não sei pra vocês, mas começa hoje a melhor estação do ano. Pelo menos pra mim. No outono eu volto às ramilongas.
Sai de cena o incandescente torpor do verão e seus dias intermináveis. Entra de mansinho o sol enviesado tentando romper a neblina em meio a um amanhecer inebriado de orvalho, e as folhas das árvores caem e assumem a cor do outono, na forma de um tapete poético.
Vitor Ramil tem suas artimanhas. Transita bem pelos (des)caminhos labirínticos, trilhas metafóricas de gente da linhagem de Borges — outro de meus favoritos outonais autores.
Tô viajando em loucos descaminhos
Como uma gota d’água num absinto
Sem árvores, sem pouso, sem um ninho
Sou pássaro de um mundo indistinto
Na fria e dura cadência rítmica de Gullar, um autor outonal lá do Norte solar, nascido em São Luís do Maranhão, em 1930 — ano da Revolução que pôs fim à “política do café com leite”. Autor de um dos versos mais pungentes de todo sempre:
turvo turvo a turva mão do sopro
contra o muro escuro
Gullar inspirou Ramil a poetizar sua turva visão à moda milongueira da Capital no rigor do frio.
Vaga visão viajo e antevejo a inveja
De quem descobrir a forma com que me fui
Ares de milonga sobre Porto Alegre
Nada mais, nada mais
Ana Cristina Cesar, autora outonal que viveu — enquanto resistiu — no limiar do outono-inverno. Quase lá, nem tanto aqui. Deixou vazar em versos o frio atemporal.
Diálogo de surdos, não: amistoso no frio. Atravanco na contramão. Suspiros no contrafluxo. Te apresento a mulher mais discreta do mundo: essa que não tem nenhum segredo.
Como se tentasse responder à provocação que brota nos versos d’Ana, Ramil sussurra, acompanhado do som de um doce piano num lamento em tom menor.
A tua pele de lua
O meu olhar de neblina
Tudo de uma vez
Numa esquina
De nós dois
E pra fechar o labirinto lá alto com as cores do outono, versos de Borges, também musicados por Ramil:
pienso que le gustaría
saber que hoy anda su historia
en una milonga.
el tiempo
es olvido y es memoria.
Né, Ramil?
Coisas que não canso de esquecer
Coisas que se escondem na lembrança
Goodbye, adiós.