
Os artistas não morrem, deixam por aqui sua obra, seus versos e filmes, suas prosas, canções, telas, cenas, e por aí vai. Pelo menos esse é o clichê no mundo das artes.
Dito isso, morreu nesta terça-feira (4), o escritor mineiro Affonso Romano de Sant'anna, aos 88 anos. Vai o corpo, ficam as palavras, as ideias e os livros. Pouco mais de um dês da morte da esposa, também escritora, Marina Colasanti, é a vez de Affonso partir.
Um dos últimos livros publicados, A vida é um escândalo, editado pela Rocco, em 2017, tem um poema que poderia muito bem ser o epitáfio do autor, que cunhou a vida à base de prosa e verso:
São 7h30 da tarde
quase noite, é verão.
Terei um minuto de contemplação
até que a luz
desapareça uma vez mais.
Affonso deixou pela Serra seus rastros metafóricos. Esteve presente na 21ª Feira do Livro de Caxias do Sul, em 2005, quando o escritor José Clemente Pozenato (1938-2024) era secretário da Cultura. Inclusive, uma das mesas de bate-papo reuniu Affonso, Pozenato e o poeta caxiense Eduardo Dall'Alba (1963-2013), registrado pelo fotógrafo Porthus Junior (foto abaixo).

Numa das inúmeras crônicas que Dall'Alba escreveu no jornal Pioneiro, afirmou: "Clarice e Affonso são nomes para se colocar no primeiro plano quando se fala em literatura contemporânea".
Noutra passagem de Affonso por aqui, em junho de 2009, ele participou da Reunião Almoço da CIC-Caxias, tratada como uma espécie de pré-lançamento da 25ª Feira do Livro. O tema da reunião já revelaria o tom da conversa: Leitura como Instrumento para a Transformação Pessoal e Social.
Conforme reportagem do colega Fabiano Finco "era para ser um pré-lançamento (...) ou um 'colóquio' sobre o assunto, segundo o prefeito José Ivo Sartori, mas a reunião-almoço de ontem na CIC acabou por se transformar num recado para empresários caxienses".
Cito a seguir, conforme a reportagem do Finco, apenas duas frases de Affonso:
— A leitura traz enriquecimento psicológico, sensibilidade, mas também enriquecimento econômico.
— Não há países desenvolvidos sem excelentes bibliotecas.
Pois é, Affonso... E ainda em 2009, dessa vez, durante a Feira do Livro, após participar de um bate-papo, Affonso concedeu entrevista à colega Janaína Silva. A mesma verve crítica ficou evidente. Separei mais duas frases (apontamentos) de Affonso:
— Passei a colecionar entrevistas de marginais sobre a leitura, porque vi que eles têm ideias muito interessantes. Toda vez que eu chegava para conversar com vereadores ou prefeitos sobre a leitura, todos diziam que a leitura é muito importante, mas nada faziam de concreto.
— Pensam que a cultura está nos museus, mas a cultura é tudo, não é diferente de educação. A cultura deveria estar presente em todos os ministérios. Toda ação, até mesmo a construção de uma estrada, deveria ser pensada com essa ótica.
Em 2011, outra vez Affonso esteve pela Serra. Foi o escritor homenageado do 19º Congresso Brasileiro de Poesia, num tempo em que Bento Gonçalves nos brindava com essa dádiva literária.
Mais recentemente — e fechando com o início do texto — Affonso esteve na 33ª Feira do Livro de Caxias, em 2017, quando lançou um de seus últimos livros e no mesmo ano em que recebera o diagnóstico de Alzheimer.
Como os poetas (bem como todos os artistas) não morrem, durmam com esse fragmento do poema A Implosão da Mentira:
Mentem desde Cabral, em calmaria,
viajando pelo avesso, iludindo a corrente
em curso, transformando a história do país
num acidente de percurso.
Affonso está aí. Está aqui também. Suas obras são facilmente encontradas nas bibliotecas das cidades — e são sempre tão poucas.