Todo verso ancorado na poesia do espanto é torvelinho. É desatino. É céu e terra no mesmo plano. Faca de dois gumes: sedicioso e afável, ácido e indelével.
Serve de quê observar o senhor de terno alinhado, sentado no balcão da cafeteria, lendo o jornal enquanto reclama do resultado das eleições com o atendente? O cabelo cristalizado de tanto gel, o anel dourado no dedo mínimo da mão direita, a gravata de seda em tom floral — destoando do cinza outonal que se sobrepõe à primavera. A descrição é só mais um acontecimento trivial, substrato de crônica e nada mais.
Final de tarde. Por volta das seis horas, em meio ao frenesi do trânsito que parece levar as pessoas do nada ao lugar nenhum. Chove incessantemente, deixando as ruas e avenidas ainda mais apinhadas de veículos ruidosos. Motoristas atravessam o sinal vermelho pra ganhar milésimos de segundo de suas vidas — arriscando a vida dos pedestres. Num dos carros, um menino desenha um céu ensolarado no vidro do carro embaçado. Lírico, né? Ou onírico?
Amanhecer ensolarado. Carros importados estacionados em frente ao clube revelam que uma pá de gente acordou motivada pra vida, cheia de vontade de malhar e praticar esportes. Antes do treino, suplemento alimentar pra suportar a malhação. Depois do aeróbico, um pouco de elevação lateral com halteres, talvez um supino de cento e poucos quilos, alternando com séries de crucifixo só pra estufar o peitoral. Fim do treino: ducha quentinha pra relaxar, isotônico e água de coco pra hidratar.
No outro lado da rua, dois convivas dividem o que encontram nos contêineres. Aos desvalidos resta o que a maioria de nós descarta, de cuecas velhas a garrafas de vinho francês, aquele resto do churrasco de final de semana que padece há dias na geladeira, ou ainda legumes e verduras quase virando adubo, tem também latas vazias de cerveja artesanal, potes com resquício de sorvete e manteiga, e até vasilhames de molho pesto. O descarte orgânico sacia a fome, o lixo seletivo, por sua vez, precisa ser carregado sobre as costas até as reciclagens, que não raro ficam próximas de pontos de venda de drogas.
Uma linha tênue separa o lixo do luxo. Uma linha tênue separa vencidos de vencedores. Uma linha tênue separa pragmáticos de sonhadores. Uma linha tênue como navalha separa a poesia da realidade.
A poesia, pra desespero geral, sempre vence. Porque — não servindo pra nada — provoca espanto nessa gente que ainda se importa com o banal. Gente que se agarra à crônica como caminho pra alcançar a poesia, desviando do real, mirando na transcendência.
— A vida é um troço muito louco, né, amor?