Surpreendi-me sob o som de um alarme distante, mas insistente, ao começar este texto. Alguma ação o desarmou, e ele cortava a manhã, entremeado com outros sons urbanos, mais próximos e mais distantes. Uma buzina, um ronco de motor, algumas sirenes. É a melodia da cidade, com frequência muito pouco harmônica, que nos acompanha e nos envolve, sem que, em geral, nos demos conta ou atentemos para os detalhes que se perdem no emaranhado dos pequenos incidentes. E vida que segue. Em um andar superior, alguém providenciava um conserto doméstico, produzindo um som de batidas repetidas e compassadas na estrutura do prédio, enquanto, a poucos metros dali, uma das cachorras, por razões caninas que só a ela cabia cogitar, fuçava no travesseiro em que estava acomodada.
Essa sucessão de fragmentos diários e sonoros contrastava com o flagrante de horas antes, ao surpreender-me, 10 e pouco da noite, ao passear com as cachorras na Matteo Gianella, sob um silêncio improvável para aquela hora e aquela rua, mas um silêncio impossível de passar despercebido, um silêncio completo da cidade, inteiro, sem fissuras, sem um carro a passar, sem latidos, sem choros, risos ou vozes distantes. Aproveitei aquele instante raro e momentâneo, que sabia fugaz. A fugacidade faz parte da realidade e está aí para ser saboreada e absorvida. Fugacidades e pequenas e imperceptíveis incidências, aliás, que preparam os enormes acontecimentos, com frequência trágicos ou lamentáveis nestes nossos dias de agressividades e intolerâncias, que desembocam em violência, e esse desfecho acaba sendo inevitável. Trata-se de uma crônica que intercala a sucessão de outras que pontuam o ano e os fatos de maior magnitude na escala do cotidiano. Esta é uma crônica da espera do que vem por aí.
Mas o futuro breve, das próximas horas, e o futuro mais prolongado e pesado são fabricados também nestes momentos de aparente dormência dos fatos. É certo que alguém, em algum lugar da cidade, trama um assalto, uma violência, uma vingança, uma traição, enquanto, em outros endereços e corações, um projeto de solidariedade corta o céu, uma boa intenção ou, melhor ainda, um gesto concreto de generosidade. Cidade essa que é cenário frenético para as vidas circunstancialmente entrelaçadas, que se superpõem sobre espaços e interesses em disputa, a todo momento conflitantes. Esse cenário urbano nos cabe humanizar, harmonizar, fazer sufocar as injustiças e a violência. A cidade é um jogo de forças, a todo momento, para cá, para lá, na diagonal, para o bem, para o mal, misturando os sinais.
Mais um ruído metálico se intromete. Como serão nossas próximas horas? Elas estão sendo fabricadas agora.
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