A entrada em vigor da Lei Orçamentária 2025 do governo da Itália, em 1º de janeiro, trouxe novidades para os descendentes de italianos que buscam o reconhecimento da cidadania no país europeu. O texto, proposto pelo governo da primeira-ministra Giorgia Meloni e aprovado pelos congressistas, institui ou aumenta a cobrança de taxas nas diversas modalidades nas quais é possível requerer o direito, gerando críticas e acusações de elitização.
O princípio de jure sanguinis (direito de sangue), adotado pela constituição da Itália, prevê que todo descendente de italianos pela via paterna tem a cidadania, sem limitação de gerações. No caso de ascendência materna, a transmissão automática aos filhos só ocorre a partir de 1948, embora os nascidos antes deste ano possam buscar o reconhecimento por via judicial. A procura por este direito tem crescido nos últimos anos, com aumento das filas nos consulados e do número de processos administrativos e judiciais na Europa, o que chamou a atenção das autoridades italianas e foi um gatilho para as mudanças.
Pela nova regra, fica estabelecida a cobrança de 600 euros de cada requerente. Essa taxa significa um reajuste de 100% no valor exigido nos consulados, onde é feito o processo por via administrativa, e que até então cobravam 300 euros. O aumento, porém, fica ainda maior para aqueles que buscam o reconhecimento por via judicial na Itália, pois se pagava uma taxa única de 520 euros por ação. Agora, cada beneficiado no processo — e há alguns com dezenas de pessoas —deverá pagar os 600 euros.
As alterações também atingem uma terceira modalidade utilizada pelos descendentes, que é a ida à Europa para o reconhecimento nos municípios italianos. A lei permite que os governos locais também criem normas para a cobrança dos 600 euros por pessoa em processos administrativos de reconhecimento, além estabelecer uma taxa de até 300 euros para emissão de certidões antigas.
Entre os variados segmentos que se envolvem com as questões dos ítalo-brasileiros, a leitura é de que as novas medidas são uma reação da Itália ao aumento da demanda pelo reconhecimento da cidadania. Já havia um debate sobre uma revisão das normas, especialmente após o vice-primeiro-ministro, Antonio Tajani, defender a ideia publicamente. A chefe de governo, Giorgia Meloni, descartou essa possibilidade, mas outros fatores acabaram precipitando as mudanças.
Um dos mais antigos operadores do direito nesta área, onde atua há 37 anos, o advogado caxiense Lonis Stallivieri teve a oportunidade de acompanhar o debate na Itália, onde está desde o mês de novembro. Ele cita que o tema começou a ganhar corpo a partir de notícias vindas do Brasil, especialmente sobre o faturamento milionário de escritórios especializados no tema. Logo na sequência, os anúncios comerciais de assessorias durante a Black Friday criaram o clima para mais questionamentos.
— Ficou a imagem de que tinha gente ganhando muito dinheiro, então era sinal de que as pessoas podiam pagar. E a gota d’água foi a Black Friday de cidadania. Na Itália, isso foi notícia em telejornal e com entrevistas, com uma repercussão muito ruim, pois passou a imagem de que no Brasil estava se vendendo cidadania como mercadoria — aponta Stallivieri.
As assessorias que trabalham na busca pela cidadania admitem que o aumento dos gastos pode fazer com que algumas pessoas desistam. Mas a expectativa é que seja um contingente pequeno diante do público potencial, o que deve manter, embora em ritmo um pouco menor, o crescimento do setor. A Nostrali, um dos maiores escritórios do setor, compartilha dessa visão, e o CEO da empresa, o italiano David Manzini, revela que já está projetando a criação de soluções como financiamentos e linhas de crédito, além dos planos de parcelamento já existentes, para contornar a questão.
Quanto aos motivos que levaram ao aumento das taxas, Manzini é bastante crítico com os atos do governo italiano. Além de considerar uma tentativa clara de elitização, classifica a medida também como uma absurda e obscena forma de limitar os pedidos de reconhecimento de cidadania. No entender dele, a medida não só impõe um obstáculo financeiro discriminatório, mas cria uma barreira econômica que afeta profundamente descendentes de italianos de países como o Brasil, onde a diferença cambial entre o real e o euro torna essa taxa ainda mais opressiva, além de sinalizar falta de compreensão em relação ao tema.
— Essa ação reflete a inércia e a falta de estratégia da Itália em lidar com seus milhões de descendentes espalhados pelo mundo. O país parece incapaz de decidir se quer se limitar a ser uma nação de 60 milhões de habitantes ou se deseja abraçar sua realidade como uma comunidade global, que alcança cerca de 150 milhões de pessoas — reflete Manzini.
Apesar de críticas aos reajustes, os escritórios de assessoria admitem que há necessidade de mostrar que a cidadania italiana não deve ser tratada como produto, já que se trata de um compromisso muito maior. Lonis Stallivieri informa que, há bastante tempo, tem feito essa ressalva aos clientes.
— A gente sempre divulgou que fica muito chato você carregar o passaporte italiano e dizer good morning ou how are you, e não saber dizer nem buongiorno. Continuaremos insistindo que com nossos clientes que eles vão ter a obrigação de, pelo menos, aprender a língua italiana. Quem está com um passaporte italiano tem que mostrar que conhece um pouco a cultura italiana, porque a grande revolta que se vê aqui é que muitas pessoas querem o passaporte e não estão nem aí para a Itália — afirma o advogado.
O CEO da Nostrali também entende que a cidadania italiana transcende à mera obtenção do passaporte e das facilidades oferecidas, como a ausência de necessidade de buscar vistos para entrada em alguns países. Para Manzini, é preciso melhorar a divulgação das obrigações e responsabilidades, além de se evitar o uso político do tema.
— É fundamental promover iniciativas que conscientizem os ítalo-descendentes sobre as responsabilidades e privilégios inerentes à cidadania italiana, fortalecendo o vínculo com a nação. No entanto, é evidente que alguns partidos políticos têm explorado o tema da cidadania italiana para autopromoção, utilizando discursos que podem ser classificados como xenofóbicos. Essa abordagem não apenas distorce a realidade, mas também ignora a rica contribuição que os descendentes de italianos ao redor do mundo podem oferecer à Itália — acredita Manzini.