Pacientes que precisam de atendimento médico domiciliar (home care) pelo Estado estão sem suporte há quase dois meses. O serviço foi suspenso em dezembro, depois que operação do Ministério Público desarticulou um esquema de desvio de recursos públicos em Passo Fundo, no norte gaúcho.
Com a ação, pelo menos 15 famílias da Região Norte ficaram sem o serviço que garante a qualidade de vida e sobrevivência de pacientes com doenças crônicas e degenerativas.
Um exemplo de quem perdeu o benefício é Amanda Lopes, 16 anos, que tem paralisia cerebral, hidranencefalia e epilepsia refratária. Ela recebia o atendimento de profissionais da saúde em casa há seis anos, após a família conseguir o atendimento via SUS através da Justiça. Em dezembro o atendimento foi totalmente suspenso.
Segundo a mãe, Pamela Lopes, a evolução que a menina teve ao longo dos anos com fonoaudiólogos, fisioterapeutas e outros profissionais, se perde dia após dia. A adolescente passava pela introdução alimentar com uma especialista, mas houve regressão depois do encerramento abrupto e voltou a receber alimentação por sonda.
— Começou de novo bastante secreção e estou tendo que aspirar ela 24h por dia. Eu revezo, às vezes com a minha irmã ou outra pessoa, para conseguir fazer outras coisas, porque tenho mais dois filhos pequenos — contou Pamela.
Pela necessidade de cuidados constantes com a filha, a técnica em enfermagem teve que parar de trabalhar. Para dormir, ela coloca um colchão ao lado da cama da adolescente.
— Com o atendimento home care, a Amanda conseguia ter uma vida junto da família. Não teve mais internação ou pneumonia de repetição, e as crises convulsivas foram controladas. Só que encerrou os atendimentos e a Amanda convulsionou, está sem medicamento e começou a ter dificuldade respiratória — relata a mãe.
"Dias terríveis", desabafa mãe
Quem vive situação semelhante é a dona de casa Fernanda Siqueira, que está desde dezembro sem receber medicamentos e outros serviços para o filho Matteo, de pouco mais de um ano. O menino tem síndrome epilética mioclônica precoce e demanda cuidados e ventilação mecânica 24h.
No ano passado, a criança ficou internada na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) por oito meses e teve alta depois que a família conseguiu o direito a atendimento home care na Justiça. Mas o alívio durou poucos meses: em dezembro Matteo teve o benefício suspenso.
— São dias terríveis. Tivemos dias em que ele ficou sem anticonvulsivo. Tínhamos que emendar (remédios) com os outros que ele já têm, não tinha nem um equipo de nutrição para a dieta — conta Fernanda.
Agora, mãe e filho têm se mantido com doações:
— Eu não posso trabalhar, não tem como deixar ele sozinho aqui. Estamos só nós dois na cidade, é complicado.
Em meio a dificuldade sem o home care, Fernanda tem o suporte de voluntários. Uma equipe de profissionais tem ido até o apartamento da família para fornecer ajuda.
— Vamos trocando porque não tem como ele ficar sem atendimento. Não podemos abandonar um bebê, né? — disse a técnica em enfermagem Flávia da Silva.
Trabalho conjunto para viabilizar atendimentos
Depois da operação, o Ministério Público encaminhou ao Conselho Tutelar uma lista de famílias incluídas no atendimento home care que precisavam ser acompanhadas.
Agora, o órgão trabalha ao lado da Justiça e do MP para viabilizar a retomada dos atendimentos.
— As famílias necessitam de um atendimento diário, é uma demanda muito grande já judicializada. Nós como órgão protetivo estamos muito preocupados que uma família que necessita dos atendimentos venha a perder seu ente querido por uma morosidade do Estado de não fornecer os atendimentos em caráter de urgência — disse o conselheiro tutelar Clédio Patias.
Como funcionava a fraude do home care
- Pais ou responsáveis pelos pacientes entravam na Justiça para solicitar o serviço de home care e, na ação, já indicavam as empresas que poderiam prestar o serviço
- Como os pedidos são deferidos por liminar e o Estado precisa licitar o serviço, a Justiça determinava o repasse de valores para bancar a contratação das empresas indicadas pelas famílias
- Enquanto o processo de licitação não era finalizado, as empresas indicadas passavam a atuar com o serviço do contratado ou, em alguns casos, sequer prestavam o atendimento
- Quando o processo licitatório era encerrado e uma companhia idônea vencia, os investigados agiam para impedir que a empresa fraudulenta fosse substituída.
- Depois da operação, todos os serviços foram suspensos.
- A investigação do MP, que culminou na Operação Gollum, identificou que proprietários de duas empresas suspeitas e seis pais e responsáveis por crianças e adolescentes de Passo Fundo participavam do esquema.
O que diz o Estado
O Ministério Público informou que solicitou que a Justiça oficiasse o Estado para que, caso necessário, houvesse a manutenção da prestação de assistência médica aos pacientes. A demanda foi encaminhada à Secretaria Estadual de Saúde (SES-RS) através da Procuradoria-Geral do Estado.
Através da assessoria de imprensa, a SES-RS informou que tem conhecimento de casos em Passo Fundo e região que precisam de home care.
A pasta iniciou processos para que os serviços sejam retomados. Alguns estão mais avançados, já em fase de pregão, enquanto outros ainda em fase de orçamento. Leia o posicionamento na íntegra:
"Considerando ação do MP na região de Passo Fundo, que afastou empresas de home care que atendiam por bloqueios judiciais, a SES foi acionada para assegurar que não fosse interrompida a assistência de quatro pacientes.
A SES de imediato iniciou processos de contratação emergencial e licitação visando atender às necessidades apontadas. Destes, dois casos já se encontram em fase de pregão no dia 24 de janeiro, um deles tem assistência parcial do IPE e o outro encontra-se em levantamento de orçamentos.
Identificou-se também outros 11 casos onde as empresas citadas prestavam atendimento na região e estamos providenciando contratação através da SES. Trata-se de contratação individual e o status de cada caso está desde a fase de orçamento até a contratação já executada".