
A enchente de maio de 2024 deixou marcas profundas na história do Rio Grande do Sul. Passado um ano da tragédia, vêm à tona histórias de pessoas que perderam tudo, deixaram seus locais de origem e ainda lutam para se reerguer.
Uma estimativa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estima que 876,2 mil gaúchos foram diretamente afetados pela enchente, o que representa 8,8% da população do RS. Entre eles estão Fátima Porto Alegre, 57 anos, e Daniel Ribeiro Gonçalves, 40 — dois moradores da Capital que, cada uma à sua maneira, encontraram em Passo Fundo a oportunidade de recomeçar.
A cidade fica na Região Norte, a única que não foi diretamente afetada pela enchente, o que atraiu muitos sobreviventes dos locais mais prejudicados, como a Capital, Região Metropolitana e Vale do Taquari.
A cabeleireira Fátima migrou para Passo Fundo a convite de um sobrinho, que também trabalha em salão de beleza, e sentiu que a cidade era o lugar certo para recomeçar.
O seu relato começa em 3 de maio de 2024, o dia em que tudo mudou. Ela viu o salão de beleza que construiu ser completamente tomado pela água que cobriu boa parte do 4° Distrito, em Porto Alegre.
— Eu só lembro que era uma sexta-feira. Sai do salão pensando em voltar na segunda, e nunca mais voltei. Ver tudo aquilo acontecendo e não poder fazer nada... Tinha o meu salão há 24 anos, a mesma clientela que me acompanhava desde sempre e, de repente, parece que alguém me tirou o chão — conta.
A água marrom danificou todo o estabelecimento, nada pôde ser reaproveitado. Naquele momento os clientes foram essenciais, pois mesmo atendendo em outro local, muito mais longe do antigo endereço, eles permaneceram fiéis.
Ainda assim, quase 10 meses depois da enchente, o desejo de mudar começou a falar mais alto. Ela, então, aceitou o convite do sobrinho e mudou-se "de mala e cuia" para Passo Fundo.
— Era outra vida, eu estava acostumada. Mas hoje Passo Fundo me faz muito bem. Fui muito bem recebida e me sinto renovada, muito feliz — ressalta.
"Eu podia não estar aqui contando essa história"

Daniel Ribeiro Gonçalves, 40 anos, lembra do dia em que a água tomou a casa onde vivia no bairro Ipanema, Zona Sul de Porto Alegre, em maio de 2024:
— Foi questão de segundos. Não conseguimos salvar nada, só a roupa do corpo. Foi algo surreal. Não imaginávamos que tomaria a proporção que tomou.
Um ano depois, volta no tempo toda a vez que escuta o barulho da chuva.
— Foi algo muito triste. Tentamos levantar o que deu: geladeira, alguns móveis. Não poder recuperar tudo aquilo que tu lutou para conseguir foi lamentável — lembra.
Mesmo depois de perder tudo, Daniel gosta de recordar apenas do trabalho como voluntário. Na casa de parentes no bairro Restinga, montou um QG junto com os familiares e distribuiu pelo menos 3 mil marmitas, que montou a partir de doações:
— Na adrenalina a gente até esquecia do que tinha passado. Nos vimos diante daquela situação e não pensamos duas vezes, tínhamos que fazer a nossa parte também. Não pensei mais em mim, mas sim no meu filho. Muitas vidas foram ceifadas e eu poderia nem estar aqui, contando essa história.

A decisão da mudança para Passo Fundo veio como uma oportunidade de ficar mais próximo do filho, de 2 anos, que mora com a mãe. Hoje ele mora no bairro São Luiz Gonzaga e reconstruiu a vida com ajuda de doações — incluindo a casa onde mora, que conseguiu através de um amigo.
— As lembranças da enchente acompanham, mas é hora de construir memórias novas. É um sentimento de esperança e alegria. Hoje eu olho para trás e vejo que, apesar de tudo, eu fiz a minha parte.