Por Idete Zimerman Bizzi, médica, psiquiatra e psicanalista
Futebol e paixão geralmente andam juntos. Passionem, do latim, remete a sofrimento, ou sentimento de amor violento. Ganhando, perdendo ou empatando, o torcedor é alguém com os sentimentos à flor da pele e muito pouca racionalidade. O esporte envolve disputa, garra, algo de luta animal. E desperta nossos instintos mais primitivos. O sujeito senta para assistir à Seleção brasileira jogar contra a Bélgica na fase das quartas de final da Copa na Rússia, em 2018, e, de repente, reage como se estivesse na savana pré-histórica, numa luta tribal por território, num jogo de vida ou morte. Qual a explicação?
Na torcida de um time, a psicologia do indivíduo se transforma, e ocorre uma identificação com o que Freud chamou de "grupo psicológico". Cada componente do conjunto assume instintivamente a identidade inconsciente grupal, e reage conforme os desígnios e objetivos desta, num funcionamento mais regressivo e com demandas grandiosas. Os protocolos sociais habituais são afrouxados, e cada membro sente-se empoderado pela força do grupo. Daí a ocorrência não rara de cidadãos habitualmente respeitosos tomarem atitudes lamentáveis em jogos, perpetrando xingamentos, deboches ou agressões físicas, e extrapolando o campo do divertimento lúdico e saudável.
Fazer parte de uma grande torcida, compartilhando um objetivo comum, e, mais do que isso, identificando um inimigo comum a ser derrotado confere ao torcedor uma profunda sensação de euforia e pertencimento, importantíssima para todo ser humano.
O outro lado da moeda é a frustração, quando o resultado da partida é negativo, e é esse o combustível para a violência.
O torcedor muitas vezes confunde, lá no fundo, o desempenho da Seleção com a sensação de merecimento próprio e valor pessoal. No nosso inconsciente coletivo, enquanto torcemos, Tite é Zeus. Neymar é Aquiles (com o calcanhar em perfeitas condições, mas o tornozelo nem tanto), e estamos nas fímbrias do Olimpo. Ou, divinos, somos admitidos com honrarias, ambrosia, e adentramos os portões dourados, ou despencamos morro abaixo e nos espatifamos em nossa falha humanidade. É a mágica do inconsciente.