Vários fatos econômicos marcaram 2017: o prolongamento da crise, com o baixo crescimento das economias líderes, a valorização (e volatilidade) do bitcoin e a inédita negociação do Reino Unido de voltar atrás na integração europeia. Mas o de forte simbolismo e não tão badalado é a China ter tomado dos EUA a bandeira do livre comércio internacional.
Há 200 anos, em 1817, David Ricardo publicou seus Princípios de Economia Política e Taxação, obra seminal do liberalismo econômico e que firmava a teoria das vantagens comparativas no comércio internacional. A política econômica decorrente da teoria era a especialização e a liberdade comercial como regra. Embora criticada por muitos, oficialmente sempre foi a adotada pela maior potência – nem sempre à risca na prática, mas principalmente como ideologia norteadora das relações comerciais. O fato de a China assumi-la precocemente decorre de momento no qual os EUA voltam-se para dentro, optam por medidas protecionistas e céticas ao multilateralismo.
Que a China iria ultrapassar o PIB americano era questão de tempo, e isso já ocorreu se a medição for por paridade de poder de compra. Mas o fator determinante para a liderança é o dinamismo tecnológico em setores estratégicos. O século 20 consagrou dois setores capazes de liderar as inovações: o de segurança ou militar (atenção, Embraer!) e o espacial. Ninguém falará dele sem mencionar as guerras e a conquista do espaço, ambos intensivos em ciência e tecnologia. Todos os segmentos que também despontaram decorreram dessa prioridade política dos países líderes: química fina, informática, bio e nanotecnologia, microeletrônica... A China vem avançando muito (talvez em 2018 ultrapasse os EUA na produção de artigos científicos), mas a liderança inconteste ainda é americana.
Tudo isso dá para pensar como os fatos são mais complexos do que a bipolarização das redes sociais. A academia americana está órfã, pois pela primeira vez de forma cabal a teoria nela dominante, tão cara a centros como Chicago e Yale, é repudiada por seu governo, sem contar que este é do até então parceiríssimo Partido Republicano. Suas teses liberais agora são oficialmente esposadas pelo Partido Comunista Chinês. David Ricardo deve estar surpreso ao ver onde foi parar sua teoria.